sábado, 5 de junho de 2010

É possível pensar em uma dramaturgia da perfórmance ? (Parte IV):E a dramaturgia performática ?


Por Lúcio Agra*
4. E a dramaturgia performática?
Buscando um caminho diverso, e sem aludir necessariamente a nenhuma noção mais explicitada de dramaturgia, Eleonora Fabião descreveu em texto recente uma possível articulação entre dramaturgia e performance que me pareceu ter um pouco a ver com a famosa idéia de Eugenio Barba de dramaturgia como sequencia de ações. Diz a pesquisadora carioca: “Sugiro que podemos encontrar em programas performativos alguns elementos dramatúrgicos discerníveis. Porém, vejase bem, restrinjo-me a apontar tendências gerais, pois considero vão, mesmo equivocado, fazer qualquer esforço no sentido de definir o que seja 'performance'” As “tendências dramatúrgicas” propostas são em torno de 15 e, na verdade, podem também ser vistas como traços distintivos (daí a advertência da autora) que vão do “estreitamento entre ética e estética (sempre)” à “ritualização do cotidiano e a desmistificação da arte” , do “desinteresse em performar personagens fictícios”, passando pela “aceleração/desaceleração da noção de identidade” ao “investimento em dramaturgias pessoais, por vezes biográficas” (FABIÃO, 2008:239).
Perspectivas semelhantes são apontadas por vários outros autores, nem sempre com essa alusão ao termo “dramaturgia”. Se, por um lado, me parece possível que, mesmo com todo o processo produzido pelos alemães que já mencionei acima, haja algum espaço para derivações de uma narratividade já totalmente desmantelada, por outro fico desconfiado, devo confessar, com a insistência com que se tenta manter viva esta denominação.
Para que possa vir em meu auxílio algum outro ponto de vista que possa corroborar o meu, lanço mão de Gertrude Stein (cuja idéia de peça-paisagem é explorada por Lehman ao afirmar que ela nada mais faz do que transpor para o teatro sua lógica artística (LEHMAN, 2007:105) Eis uma autora que foi intensamente lida por Hélio Oiticica, artista brasileiro que antecipou alguns dos temas mais discutidos na arte de hoje, dentre eles a propensão ao desenvolvimento daquilo que Nicolas Bourriaud vem defendendo sob o nome de “estética relacional” (e à qual, na mesma palestra mencionada, Lehman contrapôs uma noção de focalização, um teatro que fosse uma espécie de foco a iluminar as surpresas que não percebemos no cotidiano).
Para Hélio Oiticica, sobretudo a partir de 1964, quando conhece o morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, a arte passa a ser um estado propositivo. O autor é um propositor e o espectador um participador. Proposições práticas em aberto. Essa é a idéia que comparece na primeira série de trabalhos que traduzem este “programa in progress” (expressão dele), que é o Parangolé. Me eximo de citar, mais uma vez, o seu famoso texto “anotações sobre o parangolé” (1965, que sucede “bases fundamentais para a definição do parangolé”, do ano anterior), mas gostaria de me concentrar em outras notas, também de 65, intituladas “A dança na minha experiência” (OITICICA, 1986). Neste texto o que Hélio assevera é que a aproximação com “a dança, o ritmo” (sempre vêm juntas para ele) cumpria uma “exigência de desintelectualização”. “A dança é a busca do ato expressivo direto, da imanência desse ato”. Estabelece uma distinção entra a dança clássica e a “dionisíaca” “que nasce do ritmo interior do coletivo”. Será certamente este sentido que lhe permite aceitar o trânsito entre um ambiente coletivo como o da Mangueira e confinamento mais solitário de um loft novaiorquino a partir dos anos 70. No segundo espaço, embora distante da dimensão coletiva da escola de samba, é possível para Hélio vivenciar a ação democrática da dança no rock. Ele mesmo considerava esse gênero musical muito mais inclusivo que o samba, por sua vez mais exigente em relação a uma competência prévia. “Até inglês dança rock” constumava dizer Hélio.
Tanto o rock como outras formas artísticas que emergem e se consolidam no trânsito 60-70 como o vídeo e a performance parecem ter em comum este novo tratamento do corpo que, como se sabe, contaminou não só as artes visuais (forjando o conceito de Arte Participativa, recentemente historiado em exposição) mas principalmente no teatro e na dança. A difícil separação que, desse ponto de vista, passa a haver entre o teatro e dança produzidos na época e a própria performance faz com que Lehman, por exemplo, precise frequentemente recorrer aos exemplos desta última para falar do pós-dramático assim como a pesquisadora e crítica americana Roselee Goldberg coloca em mais de um de seus livros a presença dos experimentos de Yvonne Reiner, Trisha Brown, Twyla Tharp de um lado e de outro Robert Wilson, Wooster Group, Performance Group e outros, na conta geral da diacronia da performance (GOLDBERG, 2006 e 2004). O que se passava, porém, é que cada vez mais as formas teatrais e da dança3 se deixavam contaminar com aqueles elementos cotidianos que, aleatoriamente, citei a partir de Eleonora Fabião, da sua lista de quinze e que se constituíam em buscas radicais pelo movimento cotidiano, impiedosa dissolução do diálogo (mesmo aquele, totalmente descarnado em Beckett que é mencionado por Szondi), investimento em um desabrido non-sense, agudo desinvestimento do virtuosismo e desafiador apreço pelo idiossincrático e, no limite, até, a pura idiotia, ou em rituais sem Deus, como diria Renato Cohen, ações carregadas de profundos simbolismos em um extremo ou caricatas formas de autoridicularização e auto-depreciação quando não mesmo uma desconfiança da própria possibilidade do fazer artístico.
Naquele mesmo texto, na parte que dele mais me agrada, Eleonora Fabião descreve com palavras simples dezessete performances bem conhecidas, usando uma descrição direta: “a história do homem que empurrou um bloco de gelo pelas ruas da Cidade do México até seu derretimento completo” “a mulher que convidou os espectadores a usarem nela, enquanto se manteve passiva por seis horas, inúmeros objetos” e assim vai (FABIÃO, 2008: 235/36) São exemplos de ações comuns que não podem ser senão descritas mas cuja densidade vivida ultrapassa de longe a mesma descrição. Pois Hélio Oiticica diz, no texto já referido, que na Mangueira descobriu “a conexão entre o coletivo e a expressão individual – o passo mais importante para tal – ou seja, o desconhecimento de níveis abstratos, de 'camadas' sociais, para uma compreensão de uma totalidade.” (OITICICA, 1986:73).
2 Em texto recente, Frederico Oliveira Coelho sugere outra hipótese: “Se no primeiro momento oi seu corpo que absorveu sua intensidade, no momento do exílio, em que a Mangueira nada mais é que uma ausência, foi a capacidade de fabulação de Oiticica que a manteve viva.” COELHO, Frederico Oliveira “Hélio Oiticica – um escritor em seu labirinto” disponível em http. A tese do texto, porém, visa demonstrar o papel fundamental da escrita – performática, assinalaríamos – de Hélio em sua obra.
3 Há toda uma linha de autores que busca trabalhar uma noção de dramaturgia para a dança – mesmo contemporânea – baseada na noção de “composição de açoes” (ver, a esse respeito, HERCOLES, Rosa “Epistemologias em movimento” (original inédito).

* Lucio Agra - Natural de Recife, PE, cresceu em Petropolis, Rio de Janeiro, e há mais de 10 anos radicou-se em São Paulo. Fez teatro amador, graduou-se em Letras na UFRJ e concluiu seu Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, onde até hoje trabalha,como Professor Adjunto do Departamento de Linguagens do Corpo. Colaborou com Renato Cohen (1956-2003)desde 1997 tanto artisticamente quanto como membro da equipe de professores de performance da Graduação em Comunicação das Artes do Corpo. Como performer, desenvolveu pesquisa em torno aos trabalhos de Kurt Schwitters(1887-1948), apresentando sua "Ursonate" em 2000, 01, 02, 03, 07 e 08. Desenvolveu, em paralelo, um "mix" de performance, sound poetry e improviso musical livre com os grupos (demo)lição (Paris, Montevideo e São Paulo, 2007/08) e Orquestra Descarrego. Autor de Selva Bamba (poemas, 1994), História da Arte do séc. XX - Idéias e Movimentos (ensaio, 2006) e Monstrutivismo - reta e curva das vanguardas (no prelo). Prepara novo livro sobre a performance no contemporâneo

Nenhum comentário:

Postar um comentário