quinta-feira, 3 de junho de 2010
É possível falar em uma dramaturgia da performance ? (Parte III)
Por Lúcio Agras*
3. E o drama?
Ora bem, e como então o Dicionário do Teatro vai tratar o Drama? Os tradutores apressamse a advertir para a diferença entre as acepções “brasileira” e “americana” do termo; a primeira, opõe este à comédia, enquanto a segunda remete ao psicológico. Na prateleira das locadoras, por exemplo, esta imagem do senso comum vem mixada de modo a localizar o “drama” como gênero sério, com narrativa de princípio-meio-fim – nessa ordem – e que, portanto, é mais exigente com o espectador do que o filme de ação ou a comédia, o terror ou o menos prestigiado western, o infantil ou o pornô, todos devotados ao entretenimento. Na locadora, o drama é nobre e acima dele somente, no caso de alguns selecionados estabelecimentos, as incríveis rubricas de “arte” ou “cinema europeu”. Segundo ainda Pavis, o drama é burguês para os franceses do século dezoito e romântico e lírico para os do dezenove. Do drama como gênero redentor, no romantismo, já se falou aqui mas além disso há a presença inaudita da artificialidade lírica do drama simbolista (Mallarmé ou Maeterlinck), muitas vezes, nesse caso, produzindo textos difíceis de obedecer àquele preceito de teatralidade antes aludido.(PAVIS, 1999:109). Da mesma forma que Pavis, Lehman se interessa pela emergência destes gêneros estranhos em fins do século dezenove e início do vinte. O melodrama do século dezoito ou o litúrgico medieval renderam formas que os reelaboram séculos mais tarde, o que faz com que Lehman afirme, recorrendo a observações antes lançadas por seu mestre Szondi:
“É elucidativo o comentário do autor sobre a prática cênica simbolista no exemplo do drama lírico A guardiã de Régnier. O poema era lido por atores que se encontravam no fosso da orquestra, invisíveis para o público, enquanto a ação se desenvolvia no palco em pantomima, por trás de uma cortina de tule. Por um lado se tratava da idéia ousada e natural de 'cindir movimento e fala' e mediante essa 'dissociação de acontecimento cênico e palavra' tomar distância da tradicional 'concepção das dramatis personae como figuras definidas, fechadas em si mesmas'. Por outro lado, essa decomposição do modelo dramático só poderia se justificar completamente se houvesse uma consequente renúncia de uma ilusão de uma realidade reproduzida, o que só ocorreria mais tarde, na forma teatral pós-dramática.” (LEHMAN, 2007:99)
Estas observações se encontram no início de uma passagem do livro em que se anuncia “uma breve retrospectiva das vanguardas históricas”, parte da pré-história do fenômeno que o livro busca diagnosticar, o pós-dramático. Os demais capítulos ou traçam um panorama do que seria passível da denominação ou enfocam aspectos constituintes (texto, espaço, corpo, tempo, mídias) além do próprio drama. Não deixa de chamar a atenção que no meio de tais categorias, abra-se um espaço para uma outra linguagem (não a dança, ou o circo, ou a mímica), a performance. Minha sensação – que apresentei em uma aula para a qual fui convidado a falar, já há algum tempo mas que permanece viva – é a de que um nexo mais do que evidente liga essa teatralidade contraditoriamente não teatral, o abandono da racionalidade dramática (baseada num especial tom narrativo que se compadria com o romance e a novela) e a performance. Em outros termos, e ecoando a máxima de Ezra Pound de que a poesia está mais próxima das artes plásticas e da música que da literatura, tenho a sensação de que o drama é prosa e a performance transa com a poesia.
Admito que o caminho que estou escolhendo é bem tortuoso e que pode não avançar tanto em relação ao que os mestres desta pesquisa, aqui citados, já apresentaram. Devo, sim, admitir que Szondi já demonstra o quanto o destroçamento do dramático se dá no Teatro Moderno, de Maeterlink a Piscator, o quanto Pavis admite que há um progressivo abandono do papel categórico da urdidura dramática, sucessivamente narrativa (clássica), brechtiana (na qual o modelo ideológico buscava o exame da “articulação do mundo e da cena, da ideologia e da estética”) e pósbrechtiana (anos 90) (PAVIS, 1999:113/14), muito embora me pareça que ainda hoje, para muitos, dramaturgia possa significar, assim o define o mesmo autor, “o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer” (idem).
Mas foi uma passagem precisa dos comentários iniciais de Lehman sobre as vanguardas que me suscitou uma inquietação cujo eco pretendo referenciar. Pois diz ainda este, no trecho que já mencionei acima, e, por sua vez, também citando Szondi, quando apresenta a justificativa do fracasso do drama lírico simbolista baseada na contradição entre recursos ilusionistas “que davam uma aura de mistério às vozes” e o antiilusionismo do conflito entre imagens e texto:
“Ao olhar para o passado sob a perspectiva do atual 'teatro high-tech', pode-se cogitar se a
curta existência do drama lírico não estaria também associada ao fato de que não estavam
disponíveis as condições técnicas para conferir suficiente densidade à poesia cênica, de modo
que a palavra poética e a realidade cênica não se tornasse tão irremediavelmente conflitantes
entre si” (LEHMAN, 2007:99)
Ao que parece, isto explica, em grande medida, o que irá se desenvolver em poéticas teatrais-performáticas como as de Robert Wilson, Laurie Anderson e equivalentes, todos habitantes da fronteira cênica que mistura multimídia, performance e tecnologia (penso também no caso de Lepage) mas que geralmente não abdicam do palco tradicional.
Lucio Agra - Natural de Recife, PE, cresceu em Petropolis, Rio de Janeiro, e há mais de 10 anos radicou-se em São Paulo. Fez teatro amador, graduou-se em Letras na UFRJ e concluiu seu Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, onde até hoje trabalha,como Professor Adjunto do Departamento de Linguagens do Corpo. Colaborou com Renato Cohen (1956-2003)desde 1997 tanto artisticamente quanto como membro da equipe de professores de performance da Graduação em Comunicação das Artes do Corpo. Como performer, desenvolveu pesquisa em torno aos trabalhos de Kurt Schwitters(1887-1948), apresentando sua "Ursonate" em 2000, 01, 02, 03, 07 e 08. Desenvolveu, em paralelo, um "mix" de performance, sound poetry e improviso musical livre com os grupos (demo)lição (Paris, Montevideo e São Paulo, 2007/08) e Orquestra Descarrego. Autor de Selva Bamba (poemas, 1994), História da Arte do séc. XX - Idéias e Movimentos (ensaio, 2006) e Monstrutivismo - reta e curva das vanguardas (no prelo). Prepara novo livro sobre a performance no contemporâneo
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