segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sobre a trilogia "O Poderoso Chefão":


A primeira vez em que assisti a "O poderoso chefão" (The Godfather) foi em 2006. Eu contava então com 20 anos, e muito embora já tivesse experiência com teatro, carecia do estudo da semiótica e de dramaturgia que, posteriormente, viria a ter na universidade. Voltei-me, nestes últimos dias, a esse filme de Francis Ford Coppola, baseado no romance de Mario Puzo. Dessa vez meu olhar foi mais clínico, por assim dizer. Assisti a obra com os olhos de quem já conhece Einsenstein e algo sobre técnica cinematográfica, mas a beleza é a mesma, mais rica, porém, porque compreendida.

A história atravessa o século XX e une Itália e América. Vito Corleone abandona Sicília, na Itália, com destino à América. Diante da morte de seu pai, este é o único destino possível. Continuasse na Itália, teria sido morto pelas mesmas mãos que assassinaram seu pai: "quando o menino crescer, ele quererá vingar a morte de seu pai", argumenta com a mãe que implora pela vida do filho. Essa mãe, ainda vestindo o luto pela morte de seu esposo, entrega a própria vida para salvar a do filho, uma criança de seis anos.

Com a ajuda de amigos da família, o pequeno Vito consegue fugir do cerco que foi armado para matá-lo, e embarca na manhã seguinte para os Estados Unidos. Esse ponto faz-me lembrar de Moisés, e também de Cristo, ambos perseguidos desde a infância: o primeiro pelo poder do faraó, o segundo, pelo imperador romano. Ambos predestinados, tal como Vito. Este, por sua vez, passará por uma série de renascimentos até transformar-se em Don Vito Corleone, o poderoso chefão da máfia italiana nos EUA. Este capítulo da história, porém, não nos é contado no primeiro filme da trilogia, mas sim no segundo.

É digno de nota a dialética de sacralidade e diabolismo da qual o filme está carregado. Em "O poderoso Chefão II", Vito ascende ao posto de novo chefe da cidade quando se vinga do então manda-chuva, armando-lhe uma cilada e assassinando-o em meio a uma procissão: temos, na mesma cena, a Santíssima Virgem Maria de um lado, e o sangue com o qual é paga a vingança de Vito. 

E por falar em vingança, esta palavra, que poderia bem resumir todo o enredo da trilogia, atravessa continentes. Vito, então um já respeitado chefão, volta a sua terra natal para encontrar o assassino de seu pai, este, também já consumido pelos anos, e com a saúde claramente debilitada. O tempo faria justiça, mas à vingança, responde Vito com vingança: enterra-lhe uma faca que atravessa sua carne, e banha de sangue o velho crápula, não sem antes apresentar-se: é preciso que ele saiba porque e por quem está sendo assassinado.

A vingança, esta fiel companheira da vaidade, conduz os passos da família Corleone. Ali, Vito Corleone, aqui, Michael Corleone, seu filho, que em defesa do pai assassina aqueles que o perseguiam. Lá, o menino que vingou a morte do pai, aqui, seu duplo, o fantasma de uma maldição como que inescapável, e que faz de Michael, o menino tímido que não queria repetir o pai, seu espelho. Pela ordem de Michael, morre Fredo, seu irmão. Mas Fredo - eu não havia citado seu nome até agora - também por vaidade conspira contra Michael: em "O Poderoso Chefão", a vingança é uma dança que envolve toda a família, e que a transforma numa espécie de covil de serpentes onde, a qualquer momento, qualquer um pode trair e ser traído.

À propósito, caro leitor, a morte de Fredo - sim, o frágil Fredo - é mais um dos célebres momentos do filme. Trata-se do mesmo Fredo que, momentos antes, conversava com seu sobrinho, e a ele contava sobre sua infância. Quando pequeno, costumava pescar com o pai. Mas não era um bom pescador, ele assume. Para que os peixes aceitassem serem fisgados, era preciso sempre uma ajuda dela, daquela que já apareceu no filme outras vezes, Nossa Senhora. Depois de uma Ave-Maria, um bom peixe para o jovem Fredo. Já crescido, Fredo é atraiçoado pelo irmão: morre com uma bala pelas costas, uma bala desferida pelo capanga de Michael enquanto este, ao longe, assistia a cena silenciosamente. Mas o algoz respeita aquele que, por uma espécie de intuição divina, acaba sendo o último pedido de Fredo, rezar uma Ave-Maria, antes de virar, por sua vez, comida de peixe. A versão oficial será a de que ele morreu afogado. E não é lá uma mentira, convenhamos: todos se afogam nessa trama de vinganças.


A cena da morte de Fredo é uma daquelas em que a dialética estabelecida entre o sagrado e o pecado se estabelece. O mesmo ocorre quando do batizado da filha de Michael Corleone com sua esposa, Kay. Nesta belíssima sequência, ao batismo do filho, Coppola contrapõe os assassinatos perpetrados pelos títeres de Michael, que como titereiro, move as peças do tabuleiro. Aqui, o batismo de água benta, ali, um batismo de sangue. Ao mesmo tempo em que o filho é batizado, o pai reafirma seu pacto com o Diabo. Também Kay, a esposa de Michael, atravessa e atravessada por esse drama, experimenta as dores do marido e, a medida em que este nasce como chefão, morre como a jovem feliz e esperançosa que foi no passado. Nesse aspecto, contribui sobretudo o figurino, bem tratado no filme em sua função simbólica, pela cor indicada, de um tom festivo para um fúnebre.


São pequenas mortes as que transformam o jovem Michael no novo padrinho, no substituto de seu pai. Morre o rapaz tímido e inocente, nasce um homem frio e calculista, que como um vulcão calado, abraça o irmão no funeral da mãe, enquanto move seus piões para dar o cheque-mate fratricida. E cada uma dessas mortes é uma confirmação de que seu compromisso é antes com o mal, e da espécie mais sedutora e inescapável, aquela que se traveste de bem para conquistar mais respeito. Com sua fortuna, Michael ajuda orfanatos, cria uma fundação de ajuda aos necessitados, e doa grandes quantias à Igreja. Mas à medida em que o tempo passa, Michael se percebe acorrentado de maneira cada vez mais inexorável às consequências. 


É aqui, já na terceira e última parte da história, que vemos um Michael velho e cada vez mais tomado pela necessidade de fazer as pazes com seu passado. Ele se confessa com um padre, numa cena muito breve, mas fundamental. Ocorre que, como disse certa vez uma santa, o Diabo pode se vestir de humildade cristã, mas nunca de obediência. O poderoso chefão três, apresenta-nos personagens que são demônios em pele de sacerdotes, padres que se dobram ao jogo sujo do qual Michael faz parte, e dos quais ele espera uma ajuda, mas pelos quais, por fim, é também traído. Quando de sua confissão, o padre que lhe ouve tece um comentário muito interessante:

"Vê esta pedra? Ela está imersa na água. (Retira a pedra da água e a quebra com as mãos). Percebe? - pergunta o padre. A água cerca a pedra de todos os lados, mas não penetra nela. É assim com o povo europeu. Por séculos o cristianismo esteve (e está) aí, por todos os lados, mas nunca penetrou de fato no coração dos homens"


 É que o demônio pode fingir, e muito bem, a humildade cristã. Ele pode até se esconder atrás de uma batina, rezar missa, oferecer hóstias, rezar o terço ou ler versículos bíblicos, mas nunca, nunca obedecerá ao magistério. O espírito mesmo luciferano que seduz toda a humanidade na forma do humanismo moderno é o da desobediência: comam a maçã e ascendam à nova era de liberdade, ó iluminada humanidade: sois deuses! E então, sem perceber, afogamos todos no mesmo mar de mentiras que se fazem verdades porque contadas como tais, e alçamos líderes políticos à categoria de deuses do futuro promissor.

 Como nota o padre, o cristianismo, muito embora esteja por todos os lados, não penetrou no coração dos homens. E o mesmo pode ser dito sobre os Corleone. Cabe notar que o padre em questão poderia vir a ser, segundo o filme, o papa João Paulo I, mas essa não é uma história verídica, e ao que pese todas as histórias que sobre esse papa são contadas, a referência é, antes, um artifício para situar o espectador no tempo histórico real.

E por falar em tempo ficcional e tempo real, as últimas cenas da terceira parte do filme trazem esse diálogo. A família corleone vai ao teatro para assistir a apresentação do jovem corleone, filho de Michael, que contra este abandonou a faculdade de direito para investir em sua carreira como cantor. Trata-se de um momento de festa e de separação. Michael armara uma cilada para atrair e assassinar seus inimigos, e enquanto a tensão das cenas da ópera Cavalaria Rusticana (Pietro Mascagni, 1890) se desenvolvem no palco, a tensão na plateia cresce: assassinatos silenciosos sob a luz que cobre o público, ameaças encenadas sob a luz do palco. As cenas lembram o suspense de Hitchcock em um de seus filmes, cujo nome me falha a memória (me ajudem a lembrar, se possível). Já a cena final, que acontece na escada do teatro, como que menciona Sergei Einsenstein em "O encouraçado Potekim" (1925). O grito calado de Al Pacino, lembra-me, por sua vez, a cena de Simone Weigel, atriz de Brecht em "Mãe Coragem".

Caso ainda não tenha dedicado tempo a esse filme, eu espero que este breve comentário possa servir para abrir o apetite. Caso já tenha assistido, que sirva de convite para assisti-lo novamente. É incontestavelmente uma obra prima do cinema, um clássico que não pode faltar em nenhuma lista das grandes obras cinematográficas.