quarta-feira, 2 de junho de 2010

É possível falar em uma dramaturgia da performance ? (Parte II)

2. a invenção da dramaturgia
Escolhi responder a pergunta ao final de minha fala pois penso ter que tecer algumas considerações antes, e mesmo que os mantenha em suspenso, na expectativa de uma solução, espero que venham a entender melhor as justificativas para o que se dirá e mesmo para a estratégia em si.
De imediato talvez seja possível dizer que a dramaturgia é uma invenção da arte teatral. A recentíssima visita de Hans-Thies Lehman, no contexto da 5a Reunião Científica da ABRACE, em São Paulo, veio a reforçar essa que me parece, com meu olhar de fora, uma afirmação verdadeira. Não faltaram momentos na fala do pesquisador alemão que enfatizassem o arco histórico que marca, segundo sua perspectiva, a era do teatro dramático (do século XVI ao XIX), perspectiva que, como se sabe, Lehman herdou de seu mestre Peter Szondi, cuja monumental obra historiográfica ele confrontou com seu Teatro pós-dramático (LEHMAN, 2008) Szondi assevera, no início do capítulo
Os comentários sobre a invenção são feitos pelo próprio Hélio no filme HO de Ivan Cardoso (1979), realizado um ano antes da morte do artista. “Experimentar o experimental” é, além de uma expressão comum nele, o título de um conjuntos de proposições esboçadas em um texto-manifesto.
“O drama”: “O drama da época moderna surgiu no Renacimento” (SZONDI, 2001:29).
Lehman em sua palestra assinalou, a certa altura, a distinção entre teatro e teatro dramático, e mesmo entre a tragédia grega e o teatro. Ao abandonar o drama, o teatro contemporâneo torna-se “performático” (como quer Josette Féral em alternativa à percepção de Lehman (FÉRAL, 2008) o que leva aquele a afirmar que o que se encerra, o vanishing point do teatro é o dramático. Diante dessa perspectiva se colocam duas alternativas para a performance: ou ela é o que de fato venceu ou ela deixa de fazer sentido como alternativa, sugada para dentro de um novo tipo de teatro. Esta reflexão, devo dizer, me assustou bastante, mas como o que a suscitou é muito recente, prefiro deixá-la de lado por enquanto para enfatizar a premissa que a orienta. Esta, por sua vez, consiste na constatação de que a performance poderia ser vista como o lado de fora do teatro dramático e que portanto há total incompatibilidade entre dramático e performático.
Entretanto é evidente que estamos falando de abstrações: qual teatro, qual performance, qual drama? E, mesmo antes, talvez seja conveniente advertir para a diferença entre dramático e dramaturgia. Aqui busco auxílio de uma visão canônica, por assim dizer. Ela me oferece um olhar “com escala”. Por isso recorro a algumas das definições de Pavis, cujo afã dicionarizante conduz a possibilidades interessantes de pensamento a partir de suas afirmações. Por exemplo, Pavis define “teatral” como “que se adapta bem às exigências do jogo cênico”. (PAVIS, 1999:371, segundo sentido). Por esse ponto-de-vista, a distância é brutal. A inadaptabilidade seria precisamente um traço distintivo para a performance. Somente se considerar o terceiro sentido (pejorativo), a performance pode se imaginar próxima desta noção de “teatral”.
Nas páginas seguintes, não obstante, Pavis lexicaliza a noção de “teatralidade” e vê a possibilidade de que se oponha ao “texto dramático lido ou concebido sem a representação mental de uma encenação” A teatralidade, nesse caso, “é o teatro menos o texto” como Pavis afirma, a partir de Barthes. Assim texto e texto dramático passam a ocupar o mesmo espaço, quase como se este fosse uma espécie de mal necessário à ação que se bastaria por sua materialidade. E isto torna o problema mais interessante e complexo na medida em que sabemos que a busca dessa materialidade se organiza especialmente em experiências como as de Grotowski ou Kantor e que para o primeiro (bem como para o segundo) o performer pode ser mais do que a mera alternativa de denominação da figura do ator. E portanto, desse modo o que vai progressivamente derrogando a forma do teatro dramático é o abandono inclemente do texto ou a sua colocação em outra esfera de presença no palco.
Isto não parece divergir essencialmente das idéias de Lehman. Nas minhas notas de sua conferência registrei algumas coisas nesse sentido. Primeiro, uma afirmação: “Um pensamento se altera em cena. O pensamento, no teatro, sempre se tranforma em jogo”; e, mais adiante, considera – embora eu talvez modifique um pouco os termos que usou – que uma pseudofilosofia ou pseudopoesia podem ficar muito boas no palco (um pouco o que costuma se passar na canção popular; dizia Décio Pignatari a propósito das letras de Torquato Neto que eram fracas quando lidas e fortes quando cantadas). O que vale é a teatralidade, portanto. O que confere sentido. Seria esse gesto de desnudamento dramático uma espécie de aceno ao mínimo essencial do teatro, sua medula? Mas eu disse que esse princípio econômico é próximo à performance.
Há aqui uma co-respondência entre planos diversos que se intercomunicam: texto, drama, pensamento. Este último, na tradição ocidental “do Renascimento à Arte Moderna” (arco proposto por Lehmann na Palestra, seguindo Szondi) se consubstanciou na palavra e produziu a narrativa, além da filosofia. O gênero dramático – visto no Romantismo como síntese de ultrapassagem – é um dos fios condutores deste poder verbal. O texto, retorcido, vilipendiado, relativizado e mesmo abandonado na tradição dramática moderna e na pós-dramática é ainda assim, para Szondi, uma espécie de reserva de manutenção do drama que entra em conflito com o teatro puro, ato ou ação cênica.
Em Szondi, o que chamamos de “texto” se estrutura sobretudo em torno de uma certa noção fixa de diálogo. Isso é a essência do drama. É a crise dessa noção que faz a trinca da modalidade criativa gerada pelo teatro dramático. Por sua vez esta crise resulta de outra, mais profunda e filosófica, que diz respeito à relação cada vez mais problemática entre forma e conteúdo. José Antônio Pasta Júnior, prefaciador da edição brasileira do livro de Szondi sobre o Drama Moderno observa: “...o procedimento de Szondi será o de examinar sistematicamente a contradição crescente, nas peças, entre a forma do drama, presente nelas como modelo não diretamente questionado, e os novos conteúdos que elas tratam de assimilar” (PASTA JR. in SZONDI, 2001:14) Isto se passa na dramaturgia de fins do século dezenove quando “uma forma estabelecida e não questionada é posta em questão pelos conteúdos que trata de assimilar, mas que já são incompatíveis com seus pressupostos.” (Idem, pg. 12) As alternativas ao impasse, ainda segundo Pasta Jr., oferecem tentativas de
“solucionar a crise do drama assumindo como elementos temáticos e formais, tão
plenamente quanto possível, os elementos contraditórios em cuja emersão ela se manifesta
e, assim procurando recuperar para o teatro uma integridade estética à altura dos impasses
que ele defronta” (Idem pg. 17)
Acho muito sintomático a relação que Szondi sugere dos que se esforçam por atingir esse nível inclua alguns dos encenadores que acabam por figurar nas antologias de precursores da performance, como é o caso de Erwin Piscator. Seja pelo uso do cinema em suas montagens, seja pelo que Szondi chama de “tempo da 'revista'” (do teatro de variedades, ou do music-hall) usam-se sequências que têm que ver muito mais com um tempo fragmentado – por vezes enérgico – que aparece em todo o universo do consumo e que, ainda assim, também é reciclado e reinstituído como narrativa linear no cinema blockbuster, algo que o estudo de Szondi não estava apto a alcançar.
O diálogo, para Szondi, é o senhor absoluto do drama e, portanto, “ele não conhece senão o que brilha nessa esfera” (SZONDI, 2001:30). A partir desse princípio norteador, o que se dá no século dezenove são tentativas de ultrapassar a clausura estética clássica que conseguem, de acordo ainda com o estudioso alemão, manter próximo o processo dramático. Em Tchekhov de As 3 irmãs, por exemplo, os diálogos não deixam de existir mas constituem-se em monólogos que se somam às situações por eles construídas. Já em Maeterlinck aprofundam-se recursos de concepção de cena e narrativa que produzem o estranho fenômeno do drama estático – retomado por Lehman – no qual os diálogos não contribuem para o progresso da ação. Os comentários sobre Os cegos, por onde o épico se insinua a cada instante, fazem lembrar a camarilha de juízes de A barraca de feira do russo Alexander Blok. O experimento de 1890 de Maeterlink vai ecoar no de quase dez anos depois, onde mais uma vez criaturas que parecem bidimensionais, meras figuras de papelão, mantém-se em cena a trocar palavras cujo sentido se esgota. O que em Maeterlink ainda se justifica narrativamente (os cegos não vêem que seu guia morreu e não podem se mover) agora, em tom de paródia e avacalhação, aponta para a estaticidade de uma crítica morta. Prossegue essa tradição pelo início do século no teatro de vanguarda russo, no qual personagens se convertem em personas – no sentido que as qualificou Renato Cohen – estereótipos conscientes de sua artificialidade. Esta, por sua vez, é traço comum assinalado pelos historiadores da performance, e converte-se em forma a ser empregada consciente de seu deslocamento, neste novo campo artístico.
De qualquer maneira, a tríade que Szondi argumenta ser parte fundamental do dramático (fato, presente e intersubjetivo), se esboroa progressivamente e é desse ponto que Lehman parte para discutir e apontar, em definitivo, o esgotamento dessa modalidade.
Produzi, de propósito, a confusão acima para agora dizer que o tema principal da palestra de Lehman não era o pós-dramático e sim a emergência renovada do texto teórico, científico ou filosófico na cena. No palco, passam a ser protagonistas pessoas comuns, não-atores ou performers que lêem textos absolutamente inadequados para a teatralidade, capítulos do Capital de Marx, fragmentos de perquirições resultantes de minuciosas pesquisas sócio-antropológicas. A cena de um debate, a reunião de idéias materializadas em uma cena impossível passam a ser o trabalho do teatro. Não a sua representação, sua presentificação sem mediações.
Performance? Ocorrem-me alguns exemplos – que podem se estender por muitos – desse tipo de ação na performance, de John Cage a Laurie Anderson, de Wooster Group a Joe Gould, das conferências sobre o nada às demonstrações patéticas de Mike Smith, passando pelas palestras fake de Amos Letteier. Ora, embora não dissesse crer num pós-pós-dramático, mesmo não acreditando também que o ciclo do drama possa sobreviver (esse ciclo teria a ver, como vimos, com o que se passou na Europa entre o Renascimento e o séc. XX), Lehman sugeriu que pensássemos que a artisticidade do teatro pode agora incorporar dados de cotidianidade que borram as margens entre a exposição científica e a cena teatral. De um modo ou de outro, no Brasil com artistas como Guto Lacaz ou fora daqui nos grupos que citou (Rimini Protocol, Theater of Oklahoma, Reiner Goebbels) há o que chamou de certa “tensão entre o profissional e o amadorístico ou diletante” que parece dar outro sentido às noções clássicas de teatral e teatralidade, tais como as vimos.

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