segunda-feira, 7 de junho de 2010

É possível falar em uma dramaturgia da performance ? (Parte V: conclusão)


Por Lúcio Agra *
5.Arte ambiental, participação, performance.
Por outro caminho, Kátia Maciel aponta, eu um artigo recente, no qual descreve os processos implicados na série de instalações “Cosmococas” produzidas juntamente com Neville D'almeida, nos mesmos anos de Nova York, o caráter de conexão ao programa radical de participação do espectador, em um espaço ritual (o que para Renato Cohen, a partir de Beuys, é o tempo-espaço do mito), sentido último da possível idéia de performance para Hélio:
"Não se trata apenas de gerar uma situação, mas de fazer com que cada um viva novas sensações-cinema, como se mesmo dentro de um grupo cada participador pudesse escolher seu filme. Neste sentido, se desconstrói a idéia de um publico uno e silencioso diante de narrativas que lhe são estranhas e cria-se um cosmos de sensações produzidas primeiro pelo e no corpo de cada integrante das experiências que se desenvolvem. Quando Hélio utiliza em suas anotações a palavra performance parece se referir a este tipo de experiência única a ser experimentada a cada sessão. (...) sentado, deitado ou pendurado na rede, é no seu corpo que o dispositivo cinema se atualiza". (MACIEL, 2007: 172)
O ambiental do Cosmococa de Hélio é a possibilidade de prover o espaço mediante o qual se produza a idéia de um espectador emancipado como bem recentemente Jacques Rancière buscou defender (RANCIÈRE, 2008). Este, por seu turno, parece ecoar a reivindicação contra a condenação feita pelo Modernismo ao ato contemplativo, tornado obsoleto. A princípio parece bem contraditório que depois de dizer tudo o que disse eu resolva questionar, como em determinado momento nosso visitante alemão o fez, a nossa compulsão pelo participativo, de algum modo demonstrando que aquele apelo à ação do espectador, nos anos 60, deveria ser posto entre parênteses, em nome de um possível lado bom no ruhig sein , no estado de contemplação. Lehman defendeu uma atitude menos invasiva dos teóricos que não deveriam prescrever e sim observar o fim do teatro como obra completa e acabada. Ora, não conseguiria expor aonde quero chegar sem que deixe de recorrer a alguns trechos longos de citação de Rancière que entretanto podem talvez resolver o dilema e manter a atualidade da proposta de Oiticica:
“Mas não poderíamos inverter os termos do problema ao perguntar se não é justamente a vontade de suprimir a distância que cria a distância? O que permite declarar inativo o espectador sentado em seu lugar senão a oposição radical, previamente colocada, entre ativo e passivo? Por que identificar olhar e passividade, senão a pressuposição de que olhar quer dizer se submeter à imagem e à aparência, ignorando a verdade que está por trás da imagem e a realidade exterior ao teatro? Por que assimilar escuta e passividade senão pelo preconceito de que a palavra é o contrário da ação? (...) Dessa forma desqualificamos o espectador porque ele não faz nada enquanto que os atores na cena ou os trabalhadores lá fora põem seus corpos em ação. (...) Os termos podem mudar de lugar ou sentido, o essencial é que permanece a estrutura que opõe duas categorias, aqueles que possuem uma capacidade diferem daqueles que não a possuem.”
Mas, logo em seguida, prossegue Rancière:
“A emancipação começa quando voltamos a por em questão a oposição entre olhar e agir, quando compreendemos que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem elas mesmas às estruturas de sujeição” (RANCIÈRE, 2008:19) Foi precisamente esta descoberta a que Hélio Oiticica fez e descreve em seu texto sobre a dança. Percebe Hélio que “olhar também é uma ação” como diz ainda Rancière “que confirma ou transforma essa distribuição de posições” (idem) Se tranforma, digo eu, o faz deslocando o olhar para uma observação que também é ação participante. O espectador (e também o aluno, o estudante) diz Rancière “participa na performance ao refaze-la à sua maneira” – e, aqui, acho que é possível fazer nexo com o projeto Cosmococa – “ao se despir por exemplo da energia vital que esta possa transmitir para fazer dela uma pura imagem e associar essa pura imagem a uma estória que ele possa ter lido ou sonhado, vazia ou inventada. É um espectador distante e ao mesmo tempo um intérprete ativo do espetáculo que lhe é proposto” . Os ambientes da proposta de Hélio e Neville ativam esse olhar que não se conforma com a contemplação e compõe “seu próprio poema” (idem, ibidem).
Penso ser possível conectar todos estes aspectos em torno a uma idéia de experiência que torna o artista alguém que produz uma “forma de consciência” (RANCIÈRE, 2008:20). É esse emergir de um processo que ultrapassa a dualidade subjetivo/objetivo, que enfatiza um caráter de experiência estética mais como vivência e menos como representação (em que pese, naturalmente, todos os sentidos do drama social, como querem as vertentes da antropologia que trabalha com a performance) , que torna obsoletas as barreiras definidas pelo que antes sustentava o etnocentrismo, o colonialismo, as visões conservadoras da sexualidade, é esse conjunto que me parece espraiar-se na generalidade contraditória do contemporâneo ao mesmo passo que comparece, com ainda outros tantos aspectos, na performance.
Ligo essa constatação às respostas de Lehman a questões da platéia nas quais dizia lhe parecer que não haveria retorno possível ao dramático para que possa, assim, também eu, responder à minha própria pergunta, àquela que disse querer atender com sinceridade: é possível falar de uma dramaturgia da performance? A resposta ainda poderia ser conciliadora, ao dizer que nós falamos disso aqui. Mas se a pergunta fosse sobre a possibilidade de uma dramaturgia da performance, temo que minha resposta possa ser simplesmente não.
Referências bibliográficas
COHEN, Renato (1989) Performance como linguagem São Paulo, Perspectiva, col. Debates.
FABIÃO, Eleonora (2008) “Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea” in revista sala preta no. 8. SP, ECA- USP, programa de pós-graduação em artes cênicas.
GOLDBERG, RoseLee (2006) A arte da performance SP, Martins Fontes, tradução de Jefferson Luiz Camargo, revisada por Kátia Canton.
GOLDBERG, Roselee Performance – Live Art since the 60s London, Thames & Hudson, 2004.
LEHMAN, Hans-Thies (2007) Teatro pós-dramático SP, Cosac & Naify, trad. Pedro Sussekind

MACIEL, Kátia “ ‘O cinema tem que virar instrumento’ as experiências quasi-cinemas de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida” in: BRAGA, Paula Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica SP,Perspectiva, 2007
OITICICA, Hélio (1986) Aspiro ao grande labirinto Rio, Rocco.
PAVIS, Patrice (1999) Dicionário de Teatro SP, Perspectiva, trad. sob a supervisão de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira.

RANCIÈRE, Jacques (2008) Le spectateur émancipé Paris, ed. La Fabrique.

SZONDI, Peter (2001) Teoria do drama moderno (1880-1950) SP, Cosac & Naify, trad. Luis Sergio Repa.

* Lucio Agra - Natural de Recife, PE, cresceu em Petropolis, Rio de Janeiro, e há mais de 10 anos radicou-se em São Paulo. Fez teatro amador, graduou-se em Letras na UFRJ e concluiu seu Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, onde até hoje trabalha,como Professor Adjunto do Departamento de Linguagens do Corpo. Colaborou com Renato Cohen (1956-2003)desde 1997 tanto artisticamente quanto como membro da equipe de professores de performance da Graduação em Comunicação das Artes do Corpo. Como performer, desenvolveu pesquisa em torno aos trabalhos de Kurt Schwitters(1887-1948), apresentando sua "Ursonate" em 2000, 01, 02, 03, 07 e 08. Desenvolveu, em paralelo, um "mix" de performance, sound poetry e improviso musical livre com os grupos (demo)lição (Paris, Montevideo e São Paulo, 2007/08) e Orquestra Descarrego. Autor de Selva Bamba (poemas, 1994), História da Arte do séc. XX - Idéias e Movimentos (ensaio, 2006) e Monstrutivismo - reta e curva das vanguardas (no prelo). Prepara novo livro sobre a performance no contemporâneo
Nota:
Exponho aqui o discurso de Agra a fim de fomentar o estudo da perfórmance e suas relações com o teatro pós-dramático, mas as opiniões manifestas pelo autor em seu discurso não representam, necessariamente, as mesmas do responsável pelo presente blog.

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