segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A identidade cultural na pós-modernidade e o conceito de "personagem": Parte 2: o personagem




No último texto por mim redigido para o blog tentei sintetizar a ideia de sujeito pós-moderno a partir da referenciada obra de Stuart Hall.A fim de cumprir com o prometido, busco o estabelecer nesta postagem uma analogia entre a imagem de sujeito como configurada na contemporaneidade e a ideia de personagem que a ela corresponde.

Eram chamadas de persona as máscaras do teatro grego.O dispositivo por elas compreendido que tinha por objetivo auxiliar a amplificação da voz dos atores era chamado de personare (para soar).De modo geral personagem e máscara são tratados como sinônimos.Enquanto construtor de personagens, deve o ator trabalhar-se de tal modo a esculpir-se em máscara corporal que revela um outro, o personagem, a máscara corpo-voz que o afirma.

Escrevi “esculpir-se” no parágrafo anterior com a intenção de comparar o trabalho do ator àquele do escultor.Tal comparação não é nem de longe inédita.Ettiene Decroux já estabelecera essa comparação ao afirmar, refletindo sobre as similaridades entre o trabalho do escultor e do ator que

“O ator deve mudar sua própria estátua no interior de sua redoma de vidro tal qual o céu muda de forma e cor.Não se vê o céu em seu mudar, só percebe-se que ele mudou”.

Continuando a tecer associações entre o trabalho do escultor e o do ator chegamos a um ponto de ruptura que especifiza cada um: a matéria-prima.Enquanto o primeiro tem na pedra, barro, mármore ou mesmo no bronze a matéria prima de sua obra, o segundo tem-se, a si mesmo, como material de construção.O ator é escultura de si mesmo em transformação pelo tempo-espaço.

Importante é diferir matéria-prima e matriz.Pela primeira podemos compreender o material bruto a ser transformado em obra de arte; pelo segundo, a fonte de estímulo primeira a sugerir uma direção – como um texto dramático por exemplo – no sentido da criação.Ainda que, nesse sentido, as matrizes possam ter sido diferentes e caracterizarem determinados períodos históricos, a matéria prima do teatro sempre foi o encontro, o tempo e o espaço presente compartilhado.

É importante notá-lo: a ideia de personagem ainda permanece senso-comunalmente aderida à um ser ficcional criado por um gênio literário.Podemos, de acordo com tal visão, falar dos mitológicos personagens do teatro grego, ou dos eternos caracteres shakespearianos como “personagens a procura de atores”.

Mas a corrosão de tal modelo é processo que se encaminha ao longo do século XX, tanto na literatura dramática - no teatro do absurdo, ou na lógica dialética do efeito de distanciamento brechtiano, que tinha como objetivo aguçar o senso crítico do espectador através da ruptura com a ifantasia ilusionista cara ao naturalismo - quanto no teatro, então, linguagem em busca de autonomia: nas vanguardas históricas – Stanislavski, Meyerhold, Craig, Vakthângov, Evreinov – bem como nas utopias artaudianas, no teatro enquanto manifestação ritual laica como preconizado por Antonin e pretendido por Grotowski, o Living Theater, e a perfórmance em sua relação com o teatro cujas fronteiras são não raras vezes imprecisas.

Às características que determinam a ruptura com o paradigma iluminista de sujeito correspondem as mudanças no conceito de personagem que associam-se ao chamado “teatro pós-dramático”: não mais um personagem como ser ficcional criado pelo escritor e “encarnado” pelo ator, sujeito outro indivisível cuja essencia determinante pode ser compreendida racionalmente e classificada através de dualismos enclausurantes - mau ou bom, mocinho ou vilão – mas ator enquanto organismo vivo no aqui e agora da apresentação, na afirmação de sua presença diante dos espectadores que compartilham do acontecimento teatral.

Cabe ressaltar que um olhar limitado sobre a complexidade a qual chamamos de teatro contemporâneo pode ceder à tentação de desconsiderar todo e qualquer modelo que fuja de padrões pós-dramáticos, o que não levaria em consideração o multifacetamento que constitui característica essencial do mesmo. O teatro é um produto cultural, e como tal, permanece em constante mobilização pelo afeto de forças cada vez mais globalizadas numa relação de conflito constante: saber-se submetido ao pós-moderno pela vivência de suas incoerências.

Assim é legítimo o teatro periférico tanto quanto o meanstream internacional, o teatro de rua bem como o teatro visual wilsoniano, o teatro de barracão bem como aquele apresentado em grandes casas luxuosas, e todos estes, mediante a cultura desenraizada da pós-modernidade mundo, vivenciam de maneira cada vez mais acelerada a sua influência mútua em um mundo onde já não é possível a aceitação da ideia de cultura subjulgada a determinismos biológicos ou geográficos como nos moldes do pensamento antropológico de outrora.

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