domingo, 22 de agosto de 2010

Hamlet em Moscou: notas para uma alocução aos atores do Teatro de Arte de Moscou


Em 1912 o teatrólogo inglês Edward Gordon Craig trabalho junto ao Teatro de Arte de Moscou na montagem de Hamlet.A carta que segue foi publicada na revista The Mask, de responsabilidade de Craig, na qual o visionário expunha suas reflexões pessoais sobre a arte teatral.Constitui um texto muito interessante, sobretudo para aqueles que se interessam pelas teorias craiguianas sobre o trabalho de ator, sobre a história do Teatro de Arte de Moscou, bem como para quem é apaixonado por esse gênio inconteste e atemporal chamado Shakespeare:

Não quero que vocês, quando chegarem a
representar este Drama de Reis e Príncipes,
criem a impressão de serem atores
atuando, pois isto quase sempre significa
algo insincero e, por alguma razão vergonhosa,
temos sido forçados a vê-lo denominado
de “teatral”.
Mas, vocês não devem ir para o outro extremo.
Se o fizerem, criarão uma impressão de
pessoas comuns que nunca viram uma corte,
muito menos um rei, e que não têm nenhuma
idéia da Realeza.
O Real ainda não é o Teatral, embora às
vezes os dois sejam confundidos. Vocês devem
tentar mover-se e falar como se estivessem em
uma atmosfera que é invulgar... pois Shakespeare
fê-la invulgar.
Para consegui-lo devem tentar pensar de
maneira invulgar e olhar todas as coisas como
coisas invulgares. O palco não oferece nada mais
difícil para os talentos de vocês.
Sou de opinião que nenhum grupo de
atores logrará representar cabalmente este senso
de Realeza até que eles se tornem eles mesmos
Reais... e para fazê-lo será necessário que vivam
suas vidas tendo por objeto supremo a cultura,
pois somente por este meio poderão absorveraquele ar que, depois de penetrar em um homem,
empresta-lhe ao menos uma certa maneira
que é magnificente e um certo tom que é doce.
É esta maneira e este tom que necessitamos
para a representação dos Poemas Dramáticos
de Shakespeare.
Eu disse cultura, pois propositalmente limito
nossas aspirações aqui à cultura: se eu fosse
adiante, deveria dizer que temos de entrar
primeiro naquele estado espiritual de êxtase que
podemos melhor imaginar do que falar a respeito.
Mas para o nosso propósito... o propósito
de Shakespeare... um estado Real é suficiente...
ou antes, não é nem a metade do caminho
para um estado religioso; e se pudermos alcançálo
de um modo ou de outro, não seremos todos
muito afortunados, chegando um passo mais
perto em direção ao estado espiritual?
E como alcançá-lo?
Agora, aqui, vocês me colocam face a face
com um Enigma ao mesmo tempo muito difícil
e bastante fácil de resolver.
Como fazer algo que é Redondo em cada
ponta ficar de pé tanto em uma, quanto na outra
ponta... O Ovo de Colombo.
Posso ajudá-los mas não ensiná-los, pois
isto é uma coisa que ninguém pode ensinar.
Posso contar-lhes algumas coisas que, se acreditarem
nelas, hão de colocá-los infalivelmente,com o tempo, mais perto do estado que denominamos
de extático.
Lembrem-se que o acme do êxtase não é
a excitação aparente, porém a aparente calma.
É o branco ardor da emoção... quer dizer, é quase
transe. Esse estado tem mil nomes e assume
uma miríade de formas. Nós o denominamos
sabedoria.
É pura emoção, com todas as suas impurezas
consumidas pelo fogo.
A fim de ter a coragem de empreender a
tentativa de entrar em tal estado, alguma grande
promessa deve-lhes ser feita de que a tentativa
não será efetuada em vão.
Eu lhes faço essa promessa. Vocês precisam
crer em mim, pois o que lhes digo é verdadeiro.
Prometo-lhes que poderão alcançar qualquer
estado desde que possam ver além dele. Sei
muito bem que, pelo menos dez ou vinte vezes
em suas vidas, vocês viram ou sentiram coisas
que lhes pareceram loucura. Vocês evitaram esses
sentimentos, não porque não gostassem deles,
mas porque não viram utilidade alguma em
apresentá-los... e assim ficaram com medo. Em
outras palavras, a imaginação despertou em
vocês e os possuiu por um ou dois momentos.
Agora, eu lhes digo que vocês precisam
despertar a Imaginação e deixá-la possuí-los por
inteiro. Tenham menos medo desses momentos
quando eles chegarem. Vão em direção deles...
corram o risco: sintam-se livres com eles;
deixem que eles os possuam. O êxtase nada mais
é senão um tipo de loucura... um tipo de loucura,
lembrem-se, não qualquer tipo de loucura.
É tudo que é Rápido... Branco... Candente...
Circular... Vasto... Firme.
É tudo o que vocês ousam sonhar e temem
chegar perto.
É o grande Perigo.
E por esta razão mesma eu lhes digo que
vocês devem ir ao seu encontro.
20 de novembro de 1909
Vocês querem chegar a entender e interpretar
uma das maiores obras de gênio que o mundo possui e, portanto, precisam aproximar-se do
estado desse gênio. Vocês precisam tornar-se
extáticos. Vocês precisam soltar-se.
É impossível acreditar que possam interpretar
uma obra tão grandiosa sem fazer uso de sua
própria grandeza. Vocês não podem fazê-lo pela
razão de cada um, que é a sua pequeneza. Vocês
só podem fazê-lo pelo poder da Imaginação.
Se vocês puderem afrouxar os laços que
aprisionam a liberdade de cada um (e sua imaginação
é sua liberdade), vocês se encontrarão
em condição para receber as comunicações de
minha imaginação.
Poderemos então nos lançar ao trabalho
e assenhorear-nos de seus segredos.
Se vocês permanecerem atados pelo intelecto
ou pela razão, nunca hão de me entender,
e seremos incapazes de chegar a algo. E eu tenho
uma só coisa a lhes comunicar. O êxtase de
Shakespeare.
Sob este cabeçalho um milhão de momentos
de loucura estão reunidos.

22 de Novembro de 1909

A loucura é algo que, quando parece ter êxito,
é chamada Heróica: quando falha é chamada
Desatino.
Tentar o que é chamado o Impossível...
isto é Loucura, e isto é Bem.
Em 20 de outubro de 480 a. C. travou-se
a Batalha de Salamina. Os gregos tinham 380
navios, e os persas 2000, comandados por
Xerxes. Eis a essência das palavras proferidas por
Temístocles, o general grego, antes da batalha:
“O argumento disto era que, em todas as
coisas que são possíveis à natureza e à situação
dos homens, há sempre o mais alto e o mais baixo”,
e que eles precisam pretender o mais alto
(Heródoto).
Eles assim o fizeram... e ganharam a batalha,
e a loucura da tentativa foi chamada de
Heróica... e justificada.
Vocês precisam fazer esta mesma tentativa
louca em Hamlet; e “se as Musas nos abandonarem
poderemos morrer” (Eurípides).
E agora que já lhes disse o que eu quero
de vocês, permitam-me adverti-los do que não
fazer. Eu lhes imploro, não pensem muito.
Todo mundo tem o hábito de pensar, mas
os atores modernos pensam muito, demais.
Pessoa nenhuma pode ver o céu pelo pensamento.
Ela o vê e o concebe por meio dos sentidos.
Pensar quando a música é tocada seria
ocioso... a gente deve simplesmente recebê-la na
alma, através dos sentidos.
E assim deve ser com Hamlet. Deixem
seus cérebros descansar e absorvam a beleza de
Hamlet através dos olhos e dos ouvidos e não
esqueçam o que é chamado toque, pois tem
muito a ver com os movimentos de vocês.
Por meio do cérebro... penando, a gente
pode atuar inteligentemente. Um homem inteligente
é aquele que pensa... e vocês são conhecidos
na Europa por serem a companhia de atores
mais inteligente do Ocidente. Por meio dos
sentidos e da alma vocês podem se tornar a mais
profunda... a mais bela... a mais espiritual.
Assim, meus caros, não pensem muito...
e sintam mais... muito mais. E deixem-me contar-
lhes agora que eu aprecio muito todos vocês
e farei qualquer coisa que estiver ao meu alcance,
e tudo o que eu puder, para lhes ajudar durante
esta sua interpretação do nosso Hamlet;
mas são vocês que têm a tarefa mais árdua... que
é induzir de bom grado a vocês mesmos ao mais
simples estado de ser possível; e vocês só podem
fazer isto escolhendo os meios mais elevados em
lugar dos mais baixos: os sentidos e a alma em
vez do cérebro.

30 de novembro de 1909

Foi provado por experiência que os Poemas
Dramáticos Shakespearianos não podem ser representados
da mesma maneira como representamos
as peças modernas.
Toda a cor abandona os Poemas quando
os interpretamos como interpretamos Ibsen, ou
Tchékov.
Uma diferença entre Shakespeare e os escritores
modernos é que, enquanto estes lidam com homens e mulheres, ele lida com tipos. Seu
amante é o tipo de todos os amantes, que nada
distingue salvo a sua paixão. Conhecemos detalhes
acerca de sua vida, mas não conhecemos
seu caráter. Shakespeare apenas nos mostra sua
paixão. É a paixão do Poeta. Romeu canta e flutua
diante de nós,... ele não conversa e anda.
Ele ama... ama de novo... adoece... revive... adoece
novamente... encontra o Destino... e morre.
E a Paixão, não o Caráter, cunha sua marca
na tragédia toda de Romeu e Julieta. Somente
lá onde algo de cômico deve ser revelado é
que o Caráter é utilizado. Aprendi isto de meu
amigo Yeats, nosso grande poeta irlandês.
Bem, então...
Uma companhia de atores que for representar
esta peça deve pesar tudo isso cuidadosamente.
É porque os modernos produtores teatrais
e atores tentam transformar os Poemas Dramáticos
Shakespearianos em Peças de caracteres
que os diretores de cena e atores atuais produzem
resultados tão lamentáveis.
Hamlet é feito de Paixão... Estilo... Música...
e Visão: mas não Caráter.
O Caráter aparece apenas incidentalmente
nas figuras dos dois coveiros, e até eles
têm algo daquela estranha aparência mística,
aquela estranha e mágica expressão de rosto que
detém nossa atenção em muitos dos retratos
gregos e nos afrescos de Pompéia.
Olhando-os, ficamos surpresos com o que
eles parecem ver... ou o que viram há muito
tempo passado e está refletido em seus olhos e
nas suas bocas. Uma gravidade que presta uma
rara beleza aos olhos arregalados e à boca levemente
aberta (nas máscaras da tragédia ou da
comédia grega a boca era assim indicada, aberta.
É o estado apaixonado. A boca fechada é o
estado intelectual). O Caráter aparece também
em Osric... e em Polônio.
E agora... como deve lidar com Hamlet
uma companhia cujos atores treinaram para representar
Peças de Caráter, como vocês fizeram,
baseando seus métodos de representação na realidade
em vez da Poesia e Imaginação?
Devem eles fazer melhor do que tratar
isto como um Romance... uma coisa de fantasia...
ou uma realidade? Ousam eles a enfrentar
coisa como ela é?
Para mim, o segredo do poder de representar
a peça reside na capacidade do ator entender
a Paixão... o branco ardor da Paixão, a
calma da Paixão, seu êxtase, e em ter dado a vida
para a criação de uma técnica que deve transmitir
êxtase àqueles que a estão olhando.
Fosse Grasso, nosso formidável Giovanni,
interpretar Hamlet, deveríamos esperar e exigir
ardor e rubor. Isto é uma outra história.
Hamlet é um santo... no entanto ama
Ofélia... nisto ele é um santo; no entanto mata
Polônio... nisto um santo...
Como assim?, perguntam vocês. Porque
ele é a criação da Imaginação, porque um Poeta
criou. Ele não é realidade. Lembrem-se do
sorriso da Gioconda que é o sorriso de Leonardo...
Hamlet tem este sorriso.
No entanto Hamlet fala muito?
Bem, não devemos tocar nesse assunto
terrível, pois ele é, infelizmente, demasiado verdadeiro.
Pode o ator hoje em dia compreender
este estado de ser, criado pela Imaginação?...
Pode ele chegar a isto?
Vamos ao ponto, então. Esta é uma questão
que lenta e relutantemente impele-nos para
frente, em busca de uma resposta...
É tão Trágico como a Tragédia de Hamlet.
Se a resposta foi “Não”, por que então
não pode ele entendê-la?
Porque...
NÃO! Nenhum homem, mas somente
anjos podem responder essa questão.
Quando o Amor, por sorte, retornar ao
Teatro dos Teatros, ele renascerá. Quando ele
voltar à Terra entrará no Teatro.
Venha, Chuang Tzu, venha me ajudar;
diga-lhes o que quero dizer... ou melhor, digalhes
que não estou totalmente errado no fato
de, por Paixão, eu me referir não às paixões...
“Hui Tzu disse a Chuang Tzu: ‘Existem,
então, homens que não têm paixões’?
Chuang Tzu replicou: ‘Certamente’!
‘Mas se um homem não tem paixões’, argumentou
Hui Tzu, ‘o que o torna homem?’
‘Tao’, replicou Chuang Tzu, ‘dá-lhe sua
expressão, e Deus dá-lhe sua forma. Como poderia
ele não ser um homem?’
‘Se, então, ele é um homem’, disse Hui
Tzu, ‘como pode ele não ter paixões?’
‘O que você entende por paixões’, respondeu
Chuang Tzu, ‘não é o que eu entendo. Por
um homem sem paixões entendo um homem
que não permite que o bem e o mal lhe perturbem
a sua economia interna, mas, antes, conforma-
se com o que quer que possa lhe suceder,
como um fato natural, e não aumenta a soma
de sua mortalidade.’
‘Os homens puros dos velhos tempos
dormiam sem sonhos, e acordavam sem ansiedade.
Comiam sem discriminação, respirando
haustos profundos. Pois homens puros tiram
alento de suas profundezas mais extremas; os
vulgares somente de suas gargantas. Dos desonestos,
as palavras são arrotadas como vômito.
Se as paixões dos homens são profundas, sua
divindade é superficial.’
‘Os homens puros dos velhos tempos não
sabiam o que era amar a vida nem odiar a morte.
Eles não exultavam o nascimento, nem se
esforçavam em protelar a dissolução. Rápido vinham
e rápido iam... nada mais. Não se esqueciam
de onde foi que haviam brotado, nem
procuravam apressar seu retorno para lá. Alegremente,
representavam as partes a eles destinadas,
esperando pacientemente pelo fim. Isto é o
que se chama não levar o coração a perder-se de
Tao, nem deixar o humano suplementar o divino.
E isto é o que se entende por um homem
puro’.”

Eis a essência do que eu desejava dizer aos
atores do Teatro de Arte de Moscou. Mas vendo
seus bondosos semblantes e testas vincadas
não tive coragem de acrescentar um vinco a
mais. Tive ao menos o espírito para me abster
uma vez mais... e eu fiz mais um desenho para
um Über-Marionette.
Gordon Craig (1872-1966). Encenador e teórico inglês.
* Texto originalmente publicado em The Mask, v. 7, n. 1, julho de 1914. Tradução de J. Guinsburg e
Fany Kon.
Fonte: CRAIG,Edward Gordon.Hamlet em Moscou:notas para uma breve alocução aos atores do Teatro de Arte de Moscou.In Revista Sala Preta, n.2,2002.São Paulo:USP,2002.p.78-81.Trad.Jacó Guinsburg e Fany Kon.

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