sábado, 8 de maio de 2010

Um amuleto feito de memória: Eugenio Barba

*O texto que segue trata do papel desempenhado pelo treinamento pré-expressivo na dramaturgia do ator.Eugenio Barba é diretor teatral de renome internacional, a frente do Odin Teatret desde sua fundação em 1964 e criador da ISTA (International School of Theatre Antropology).Dentre suas obras destacam-se “A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral”, organizado em parceria com o historiador teatral Nicola Savaresi e “Canoa de papel:tratado de antropologia teatral”, além de “Terra de cinzas e diamantes”, no qual remonta a seu início no teatro e a sua relação com Jerzy Grotowski.Um presente aos leitores do blog.

Um amuleto feito de memória: o significado dos exercícios na dramaturgia:

A revolução do invisível. No século XX ocorreu uma revolução do invisível. A importância das estruturas escondidas se manifestou tanto na física como na sociologia, tanto na psicologia como na arte ou no mito. Também no teatro ocorreu
uma revolução similar, com a particularidade de que neste caso as estruturas invisíveis não eram algo a descobrir para compreender o funcionamento da realidade, mas algo para recriar sobre o palco cênico para dar à ficção do teatro uma qualidade de vida.
O invisível dá vida àquilo que o espectador vê e à sub-partitura do ator. Com o termo "sub-partitura" não me refiro a um andaime escondido, mas a um processo profundamente pessoal freqüentemente impossível de verbalizar. Sua origem pode residir em uma ressonância, em um movimento, imagem ou constelação de palavras. Esta sub-partitura pertence ao nível de organização básico sobre o qual se apoiam os ulteriores níveis de organização do espetáculo da eficácia da presença individual dos atores ao entrelaçamento da relação deles, da organização do espaço às escolhas dramatúrgicas. A interação orgânica dos diversos níveis da organização provoca o sentido que o espetáculo assume para o espectador.
O sub-texto, como o chamava Stanislavski, é uma forma particular de sub-partitura. A sub-partitura não consiste necessariamente na intenção ou no pensamento não expresso de um personagem, na interpretação do seu "porque". A subpartitura pode ser constituída de um ritmo, de uma canção, de um modo particular de respirar, de uma ação que não é executada nas suas dimensões originais, mas que é absorvida e miniaturizada pelo ator, que não mostra, mas que se deixa guiar na quase-imobilidade pelo seu dinamismo.
Uma ação física: a ação perceptível mas pequena Stanislavski, que a muitos parecia um mestre de interpretação psicológica, analisava caráteres e motivações com o refinamento de um escritor. O objetivo era deduzir, através da espessa rede do sub-texto, uma série de pontos de apoio para a vida das "ações físicas". E quando falava de "ações físicas" referia-se, antes de tudo, a uma sucessão de atitudes ou movimentos dotados de uma interioridade própria. Se devo definir para mim mesmo o que seja uma "ação física", penso numa suave brisa sobre uma espiga. A espiga é a intenção do espectador que não é sacudida como quando exposta a um temporal, mas aquela brisa é suficiente para deslocar a sua perpendicularidade.
Se devo indicar a ação física ao ator, sugiro que ele a reconheça por exclusão, distinguindo-a do simples "movimento" ou do simples "gesto". Digo-lhe: a "ação física" é "a menor ação perceptível" e se reconhece pela mudança total da tonicidade do corpo, ainda que o movimento executado seja microscópico, como por exemplo uma mão que se estende imperceptivelmente. Uma verdadeira "ação" produz uma mudança de tensão em todo o seu corpo e conseqüentemente uma mudança na percepção do espectador. Em outras palavras, tem origem no tronco, na espinha dorsal. Não é o cotovelo que movimenta a mão, não são os ombros que movem os braços mas é no torso que se localizam as raízes de cada impulso dinâmico. Esta é uma das condições para existência de uma ação orgânica. É evidente que não basta apenas a ação orgânica. Se ao final a ação não aparece habitada por uma dimensão interior, torna-se vazia e o ator aparece preestabelecido pela forma de sua partitura. Não creio que exista apenas um modo de fazer brotar a interioridade. Creio que o método seja de negação: não impedir que a interioridade se desenvolva. Isto se pode aprender contanto que se comporte como se não se pudesse aprender.
A idade dos exercícios A revolução do invisível marcou a idade dos exercícios no teatro. Um bom exercício é um paradigma de dramaturgia, ou seja, um modelo para o ator. A expressão "dramaturgia, do ator" refere-se a um dos níveis de organização do espetáculo ou a uma das faces do enredo dramatúrgico. Em todo espetáculo existem numerosos níveis de dramaturgia alguns mais evidentes que outros, mas todos necessários para a recriação da vida sobre o palco. Mas que diferença existe entre um exercício (o qual defini anteriormente como um "paradigma de dramaturgia") da dramaturgia no sentido tradicional, da comédia, da tragédia ou da farsa? Tanto num caso, como no outro se trata de um entrelaçamento bem montado de ações. Enquanto a comédia a tragédia e a farsa têm uma forma e um conteúdo, os exercícios são forma pura, entrelaçamentos de desenvolvimentos dinâmicos sem trama, sem história.
Os exercícios são pequenos labirintos que o corpo-mente do ator pode percorrer e re-percorrer para incorporar um modo de pensar paradoxal, a fim de distanciar-se do próprio agir cotidiano e entrar no campo do agir extra-cotidiano do palco. Os
exercícios são como amuletos que o ator traz consigo, não para exibir, mas para extrair determinada qualidade de energia da qual lentamente se desenvolve um segundo sistema nervoso.
Um exercício é feito de memória do corpo. Um exercício se torna memória e age através do corpo inteiro. Ao inventar os "exercícios" para a formação de ator no início do século XX, Stanislavski, Meyerhold e seus colaboradores deram vida a um paradoxo. Os seus "exercícios" eram algo muito diferente dos executados nas escolas de teatro. Tradicionalmente os atores se exercitavam em esgrima, ballet, canto e sobretudo representando fragmentos de obras mestras de repertório teatral. Em vez dos "exercícios", eram elaboradas partituras codificadas nos mínimos detalhes com um fim neles mesmos. Tudo isso é evidente quando analisamos os exercícios mais antigos que legaram até nós a biomecânica de Meyerhold, cujo objetivo era ensinar "a essência do movimento cênico".
Interioridade e interpretação.Existem pelo menos dez características que distinguem um exercício e que explicam a sua eficácia como dramaturgia reservada ao trabalho não público do ator, ou seja, o trabalho sobre si mesmo: 1- Os exercícios são antes de mais nada uma ficção pedagógica. O ator aprende a não aprender a ser ator, ou seja a não aprender a atuar. O exercício ensina a pensar com o corpo-mente. 2- Os exercícios ensinam a executar uma ação real (não realística e em si real). 3- Os exercícios ensinam que a precisão da forma é essencial para uma ação real. O exercício tem um começo e um fim. O percurso entre estes dois pontos não é linear e sim rico de peripécias de mudanças, de saltos e curvas e contrastes. 4- A forma dinâmica de uma exercício é uma continuidade que se constitui de uma série de fases.Para ser apreendido com precisão deve ser segmentado. Este processo ensina a pensar na continuidade como uma sucessão de fases minúsculas bem definidas (ações perceptíveis). O exercício é um ideograma e, como todo ideograma, é feito de traços que devem ser executados sempre segundo a mesma sucessão. Pode-se variar a espessura, a intensidade e o ímpeto do traço individual. 5- Cada fase do exercício empenha o corpo inteiro. A transição de uma fase a outra é um sats. 6- Cada fase do exercício dilata, refina ou miniaturiza alguns dinamismos do comportamento cotidiano.
Estes dinamismos são assim isolados e montados, sublinhando o jogo das tensões, dos contrastes e das oposições, ou seja, os elementos da dramaticidade elementar que transformam o comportamento cotidiano naquele extra-cotidiano do
palco cênico. 7- As diversas fases do exercícios criam a experiência do próprio corpo como algo não unitário, mas algo que se torna sede de ações simultâneas. Num primeiro momento esta experiência coincide com um sentimento de dolorosa desapropriação da própria espontaneidade, em seguida transforma-se no dote básico do ator, na sua "presença" pronta a projetar-se em direções divergentes com a capacidade de magnetizar a atenção do espectador. 8- O exercício ensina a repetir. Aprender a repetir não é um problema. O problema é saber executar uma partitura sempre com maior precisão. Torna-se difícil no estágio seguinte, quando a dificuldade consiste em continuar a repetir sem torná-lo monótono, descobrindo e motivando novos detalhes, novos pontos de partida dentro da partitura. 9- O exercício é o caminho de refutação: ensina a renúncia através do trabalho sobre uma tarefa humilde. 10- O exercício não é um trabalho sobre o texto, mas sobre si mesmo. Põe o ator à prova através de uma série de obstáculos. Permite que o indivíduo se conheça através da auto-análise. O exercício ensina a trabalhar sobre o visível através de formas que se podem repetir. Estas formas são vazias. Inicialmente estão cheias da concentração necessária para executar devidamente a sucessão de cada fase particular. Quando são dominadas ou bem morrem ou se enchem através da capacidade da improvisação, ou seja, a capacidade de variar a execução da mesma sucessão de fases. De uma partitura de exercício desenvolve-se, então, uma sub-partitura. O valor do visível e do invisível, da partitura e da sub-partitura gera a possibilidade de fazer com que dialoguem, cria um espaço interior no desenho dos movimentos e na sua precisão. O diálogo entre o visível e o invisível é exatamente aquilo que o ator sente como interioridade e em alguns casos até como meditação. E é aquilo que o espectador experimenta como interpretação.
A complexidade da emoção Quando se fala de dramaturgia deve-se pensar na montagem. O espetáculo é um verdadeiro e próprio sistema que integra diversos elementos que obedecem a uma lógica própria e estão relacionados entre si e com o ambiente externo. Dramaturgia do ator quer dizer, acima de tudo, capacidade de construir o equivalente da complexidade que caracteriza a ação na vida. Esta construção, que é percebida como personagem, deve exercer um impacto sensorial e mental sobre o espectador. O objetivo da dramaturgia do ator é a capacidade de estimular reações afetivas. Pareceria um paradoxo uma vez que freqüentemente, banalizando Brecht, muitos (especialmente aqueles que não assistiram a nenhum de seus espetáculos) afirmaram que o ator não deveria tocar o espectador emotivamente, mas sim estimulá-lo à reflexão e ao julgamento. Deve-se entender que a reflexão, compreensão e julgamento são também reações afetivas. São emoções. Existe a concepção ingênua segundo a qual a emoção é uma força que conquista e sujeita uma pessoa. Na realidade, a emoção é um complexo de reações a um estímulo. O enredo complexo de emoções que se encerra no termo "emoção" caracteriza-se pela ativação de pelo menos cinco níveis de organização que às vezes se inibem uns aos outros, mas que estão sempre presentes simultaneamente: 1- Tomemos uma mutação subjetiva que normalmente se chama "sentimento" por exemplo, o medo: um cão se aproxima de mim pelo caminho. 2- Faremos uma série de avaliações cognitivas: considero que o cão parece bem domesticado. 3- Manifestam-se reações autônomas que não dependem da minha vontade: a aceleração do batimento cardíaco, da respiração, o suor. 4- Temos um impulso a reagir: acelero o passo e afasto-me. 5- Tomamos uma decisão sobre o modo de comportar-nos: esforço-me para caminhar tranqüilamente. O ator deve reconstruir a complexidade da emoção e não o resultado como sentimento. Devemos, então, trabalhar sobre todos os diferentes níveis que caracterizam uma "emoção", os quais, ainda que pertencentes ao mundo do invisível são fisicamente concretos. Cada uma destes níveis são guiados pela sua própria coerência. Alcança-se a complexidade entrelaçando elementos simples em contraposição ou em consonância, mas sempre simultaneamente. Tudo isso oferece possibilidades infinitas, teatralmente falando. Posso construir a minha reação perante o cão trabalhando separadamente com as diversas partes do corpo: as pernas, por exemplo, comportam-se corajosamente; o tronco e os braços, ligeiramente introversos revelam avaliação e reflexão; a cabeça mostra a reação de afastar-se, e o ritmo de piscar dos cílios tenta reconstruir o equivalente das reações autônomas. Esta complexidade de resultados é alcançada através do trabalho sobre elementos simples, separados entre si, montados nível por nível, entrelaçados, repetidos até que se fundem numa unidade orgânica que revela a essência da complexidade que caracteriza todas as formas viventes. O exercício ensina justamente esta passagem do simples ao múltiplo simultâneo, o desenvolvimento de uma minúscula ação perceptível, não linear mas rica de peripécias, mutações, curvas e contrastes, através da interação de fases bem definidas. Em uma palavra, reconstruindo artificialmente a complexidade, o exercício encontra o drama.
Fonte: Revista do LUME, número 01, outubro 1998, Campinas, Lume - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – Universidade Estadual de Campinas.

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