sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Guetos:



Hoje não basta ser gay, tem que levantar a bandeira do partido. Não basta ser cristão, tem que mandar todo mundo pro inferno e dizer-se, de si mesmo, que já tá salvo, amém! Não basta ser ateu, tem que formar um grupo de ateus, uma associação, e lutar contra aqueles que estão sedados pelo "ópio" da religião. Não basta ser mulçumano, tem que praticar a jihad guerreira - esse termo tem várias concepções dentro do islamismo - e matar qualquer que não creia em Alah. Não basta ser negro, tem que lutar contra os branquelos, essa raça de víboras escravocratas!

Eu acho que deveríamos fazer revoluções. A revolução dos ateus, a revolução dos evangélicos, a revolução dos negros, a revolução dos gays, enfim, a revolução de todos os oprimidos. Ai eles perceberiam que tanto os negros quanto os brancos tem preconceito uns contra os outros, e o negro pode ser preconceituoso tanto quanto o branco. E o ateu, contra o teísta, e por ai vai... Ai a gente viveria em guetos. O gueto dos homossexuais, o gueto dos heterossexuais, o gueto dos pansexuais também (por que não?) o gueto dos ateus, o gueto dos negros, o gueto dos brancos, o gueto dos judeus, o gueto dos mulçumanos - que continuariam a matarem-se entre si - o gueto dos negros, e por ai vai. Ai eles iam perceber que dentro desses guetos eles continuariam a ser oprimidos de alguma forma pelos seus semelhantes: os negros se oprimindo entre si, os ateus se oprimindo entre si, os cristãos se oprimindo entre si, os mulçumanos se oprimindo entre si, os brancos se oprimindo entre si, etc... Ai eles teriam de decidir por que tanta opressão! Caralho! Enfim, talvez, a gente compreenderia que existem sim valores morais objetivos, como o respeito à vida humana acima de tudo, e pararíamos com essa palhaçada de interpretar o outro como nada mais que um ente político rotulado pelo "grupo" ao qual pertence, e passaríamos a enxergá-lo como indivíduo, um, singular, uma pessoa, não uma etiqueta. Pronto! Falei! Quem curtir repasse...

sábado, 26 de novembro de 2011

Fausto no espelho:


Partamos do princípio de que a história, passada, é transmitida através do discurso escrito. Depois de Marx, sobretudo, a historiografia se reduziu a isso: a análise da relação dialética entre os opressores e os oprimidos, cuja síntese constitui a condição de cada ente, então, reduzido ao seu aspecto político. Ocorre que a filosofia marxista é ateia em si, e, a partir de então, a religião é compreendida não em sua dimensão histórica e teológica envolvida na ideia de uma entidade transcendente, senão somente como o "ópio" que sustenta o povo em sua condição de oprimido. Todo erro tem um que de verdade, e percebendo a medida da verdade, reluz a dimensão do equívoco: a revolução sempre veio de cima e foi financiada pelo capital - concordaria Marx. O opúsculo marxista fecha com chave de ouro: "proletários, uni-vos!" Mas a história mostra que as ideias de Marx, quando aplicadas no mundo real, alimentam o espírito opressor que resiste no próprio humano, desde sempre, movido não apenas por seu aspecto político, como peça de um jogo dialético materialista, mas como indivíduo inserido na História - com H maiúsculo, conceito que se corroi junto a falência da metafísica. A revolução russa caminha para o totalitarismo de Stalin, a chinesa, no de Mao, a cubana apresenta-se em seu quadro paradoxal: Che Guevara, assassino sanguinário que hoje tange as roupas vermelhas de quem não conhece essa história a fundo, mas tem pelo líder argentino - nem cubano era! - muitas vezes uma relação que substitui aquela que um religioso teria com as figuras sacras: é o demônio alçado à categoria de santo, o líder político que se apresenta como deus.

Como sempre foi, como é, como sempre será, as revoluções partem de cima. O grande giro revolucionário que nasce a partir do marxismo, maquiando alguns de seus aspectos e reformando outros, dá-se com Antônio Gramsci: o marxismo cultural. Na perspectiva gramsciana, a revolução deve ser compreendida antes como processo que como um ato de rebeldia direto. É através Gramsci que Marx se insere na cultura por meio da educação, de uma pedagogia do oprimido, e, com o freudo-marxismo de Hebert Marcuse, abraça a psicanálise e a psicologia: o "mal estar na civilização" que Freud nota em seu emblemático ensaio, se transforma numa condição própria do capitalismo.

No que tange a teologia, a filha de Marx nesse campo é a "teologia da libertação", professada com a lamoriosa veemência de um típico revolucionário pelo teólogo brasileiro Leonardo Boff. Toda a teologia pressupõe uma filosofia: a tese da consubstanciação, definida pelos primeiros padres filósofos da Igreja Católica nos primeiros séculos do cristianismo, por exemplo, nasceu de um debate prolongado tecido entre a comunidade de teólogos cristãos da época com base na filosofia grega e nos textos bíblicos. A teologia da libertação nasce do enlace entre a teologia cristã, pautada, pois, pela narrativa bíblica, e a filosofia marxista. A partir dessa ótica, a história do povo hebreu pode ser compreendida como uma grande epopeia da libertação do povo oprimido das garras de seus opressores. Moisés, por exemplo, é símbolo do heroi libertário que salva Israel do cativeiro egípicio, e Cristo reduz-se a um revolucionário político que prega a salvação dos pobres contra o julgo de seus opressores.


Mas a teologia da libertação reduz a ideia de Deus - metafísico, transcendente, onipotente, onisciente, criador do universo, causa primeira sem causa anterior - ao tempo: concede à criatura o status da criação. A libertação - poucos poderiam perceber o ardiloso sussurrar diabólico por trás do beletrismo intelectual de Fausto irônico - é a libertação, enfim, do julgo do último opressor: o Deus mau, todo poderoso: uma teologia de fundo ateísta: não poderia ser diferente, já que abraça uma filosofia ateísta.


Tá, mas e dai?

E daí que, com a lenta morte da metafísica - que se estende pelo modernismo e se agudiza na pós-modernidade - o sentimento de vazio existencial decorrente da condição de órfão, diria Freud, que via em Deus um reflexo da imagem do pai -  é preenchido com desculpas vendidas no atacado e no varejo: um novo mito, uma nova onda, um nova "tábua de salvação", como um meio de plantar o paraíso na Terra: tudo isso vira artifício na mão de uma pequena oligarquia que sustenta seu poder na ilusão do ópio outro, ateu, e que é vendido pela imprensa comprada pelo capital dessa mesma oligarquia. Todos, então, como soldados bem treinados para o exército anônimo que os convoca, bradam o mais novo bordão aprendido nos canais do YouTube, na Tv, nos jornais, ou mesmo em teorias da conspiração que, porque chamam a atenção, também podem ser usadas como desvio de foco para o quadro geral que nos compreende. Assim, cada um faz de sua própria vaidade um objeto louvável de pregação revolucionária e, juntos, caminhamos pela trilha indicada por um poder anônimo que tem na midio-cracia sua máscara maquiavélica.

Não me espanta que o ateísmo ganhe força nesse estado de coisas, e que muitas vezes seus partidários apelem para seu ódio como um tipo de argumento, projetando-o na imagem de Deus. O homem moderno é Fausto sedento, e tudo indica que não aprendemos com a História, que, na verdade,  a história é uma falácia tendenciosa que semeia o ódio pela imagem de Deus, face outra de nossa imagem...

... num reflexo monstruoso eu observo meu rosto no espelho: sou mortal, e tenho em mim as sementes da destruição: o que direi a mim mesmo, no silêncio da minha consciência, no instante final, quando o finito se depara com o mistério da eternidade?


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Compartilhem


Dias atrás, Palden saiu do monastério, cobriu-se com gasolina e ateou fogo em si mesma para  protestar contra a repressão chinesa sobre o Tibet. Vamos responder ao seu apelo desesperado criando uma petição massiva para os líderes mundiais tomarem medidas  diplomáticas urgentes.



Há alguns dias, Palden Choetso saiu do convento, despejou gasolina sobre seu corpo e ateou fogo em si mesma enquanto pedia por um "Tibet livre". Ela morreu alguns minutos depois
. Desde o mês passado, nove monges e freiras se auto-imolaram como protesto contra uma crescente repressão chinesa sobre o pacífico povo tibetano. 

Estes atos trágicos são um apelo desesperado por ajuda. Com metralhadoras em punho, as forças de segurança chinesa estão espancando e sequestrando monges, cercando os monastérios, e até mesmo assassinando idosos que defendem os monges -- tudo isso em uma tentativa de suprimir os direitos tibetanos. A China restringe severamente o acesso à região. Mas se conseguirmos persuadir alguns governos a enviarem diplomatas e expor essa crescente brutalidade, poderemos salvar vidas.

Temos de agir rapidamente -- essa situação horrível está saindo do controle por trás de uma cortina de censura. Cada vez mais temos visto que quando os próprios diplomatas são testemunhas das atrocidades, eles são motivados a agir, e aumentam a pressão política. Vamos responder ao apelo trágico de Palden e criar uma petição massiva para que seis líderes mundiais, que têm maior influência sobre Pequim, enviem uma missão ao Tibet e se posicionem contra a repressão. Assine a petição urgente:

https://secure.avaaz.org/po/save_tibetan_lives/?vl 

sábado, 19 de novembro de 2011

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A morte da metafísica e uma desculpa pra preencher o vazio:




O ateísmo cientificista que se dissipa como vírus pelas redes sociais é a mais recente moda revolucionária: ateus, uni-vos, parece bradar Dawkins, Hitchens e Dennet. A ideia mesma do ateísmo tem raiz diabólica - independente de ler-se esse adjetivo como referência à metáfora ou ao fato - remonta mesmo a narrativa bíblica sobre a criação da humanidade em que o homem é tentado pela serpente à provar da àrvore cujo fruto traria o  conhecimento do bem e do mal:
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela. Gênesis 3:2-6

 Seria Nietzsche, o filósofo alemão, que, no século XIX, comentando a passagem acima colocada, diria que Deus, ao criar o homem "havia criado para si um rival. A ciência torna-o igual a Deus - tudo está acabado para sacerdotes e deuses quando o homem se torna homem de ciência". Segundo Nietzsche, a "moral" da história do Éden seria a de que "a ciência é a coisa proibida em si". Ao longo de seu discurso - aqui faço referência à obra "O anticristo", cuja primeira edição data de 1888 - ele insinua-se em alguns momentos com o darwinismo, então incipiente, e encerra com uma condenação feérica contra o cristianismo fundada em sete artigos que concluem o livro. 

O século XIX é também o berço do socialismo, que dá seu primeiro grito de guerra com Marx e Engels em seu "Manifesto do partido comunista". No opúsculo marxista o também alemão - "está provado que só é possível filosofar em alemão", diria Caetano - propõe que a história pode ser compreendida como o desenvolvimento da luta de classes ao longo do tempo e evoca a luta do proletariado contra a burguesia opressora: "proletariado, uni-vos!", é o grito de guerra que conclui seu texto.

Freud, por sua vez, busca explicar como a fé em Deus origina-se, sob o ponto de vista psíquico. Quando nos encontramos no âmbito da questão, em Freud, três textos são basilares: Totem e Tabu, O futuro de uma ilusão e Moisés e o monoteísmo. No primeiro, o ... alemão (!) sugere que o culto ao totem - animal adorado como entidade sagrada em comunidades tribais - teria surgido com base no trauma ancestral advindo do assassinato do pai: o animal sagrado representaria, deste modo, o pai assassinado. A imagem de pai, que percebemos no Pai Nosso, na ideia de um Deus "Pai" todo poderoso, seria reflexo do pai, que, bem sabemos, é mortal, nada mais que um humano como nós: morto o pai - simbolicamente - outro símbolo seria alçado à categoria de pai, mas, desta vez, numa dimensão maior, um super-pai, por assim dizer, um... "Deus, Pai todo poderoso". Em Moisés e o Monoteísmo Freud - um judeu que se tornou ateu - se volta à história de Moisés para tratar de seu caso específico, e o faz com conhecimento de causa, já que, judeu, conhecia muito bem as Escrituras.

Nietzsche por certo foi lido por Freud, que, como aquele, previa a falência da religião, acompanhando mesmo a ideia de Deus. Em seu "Futuro de uma ilusão" ele propõe que dentro de um certo prazo Deus poderia desaparecer do pensamento humano como um devaneio apagado pela sóbria racionalidade.

Darwin, Nietzsche, Marx e Freud dão-se as mãos ao longo do século XX, que assiste ao nascimento do existencialismo de Sartre, que proclama a máxima paradoxal da condenação à liberdade: não existe mais espaço para a metafísica, só nos resta agir dentro do campo do possível enquanto existimos: o homem existe, somente. Assassinado por um lento corte da navalha de Ockham, Deus morre na filosofia junto a toda metafísica e, diria Freud, nos deixa órfãos: a partir de então é enfrentar o complexo da orfandade ou inventar uma verdade melhor: uma religião fashion, um novo drops alucinógeno, ou uma nova utopia, um motivo pra ficar raivoso contra o mundo e tentar plantar o paraíso aqui e agora.

Mas nesse afã nasce a guerra: ela nasce no momento em que eu percebo que o outro é o outro, e que o meu ideal de "mundo melhor" entra em choque com o ideal de "mundo melhor" do outro. E é partindo do pressuposto de que o "mundo melhor" é de fato possível, já palpável como que numa realidade concreta - ainda que não passe de uma imagem que projetamos para um futuro hipotético - que justificamos o ódio a quem discorda: o discordar vira sinônimo de desrespeitar, de ser o inimigo, o culpado por todas as mazelas do mundo, e, na certeza de fazer o bem para o mundo, praticamos o mal (...) tudo isso no mar absurdo do relativismo ético, que abraça essa dança fazendo mesmo do bem e do mal conceitos pares. 


Ou entendemos que o Éden terreno não passa de uma utopia infantil ou então brincamos de rei, e, como se fôssemos Deus, assumimos a tirania que alguns projetam em Deus, passando a cometer as piores barbáries em nome de um futuro hipotético no qual o mundo, enfim, será mais "justo", um mundo "melhor", adjetivos que assumem significados diferentes de acordo com cada moda revolucionária.

O homem contemporâneo: um Fausto revoltado.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Luiz Felipe Pondé no Roda Viva:

 
 
 

"Eu acho que o viagra fez mais pela humanidade do que 200 anos de marxismo" - Luiz Felipe Pondé

Assistam também as demais partes.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Freuda-se:

 
 
"(...) a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas renúncias culturais, ainda sentidas da forma mais aguda, e tem, por isso, um incomparável efeito reconciliador com os sacrifícios oferecidos a essas renúncias".

Sigmund Freud




sábado, 15 de outubro de 2011

Sobre o ato de escrever:

 

Escrever como uma forma de oração. Transpor à letra o ímpeto que jaz latente na alma ardente. Pensamentos que vão e voltam, transformados em signos que colorem a tela branca de faíscas de dúvida. Escrita-ação – Luckács entrega sua caneta ao soldado que lhe acompanha até a prisão: a escrita é uma arma por vezes mortal – e àqueles que desgostam da escola de Frankfurt, cabe também escrever: os jornais: um palco de guerra.

Escrita-vida: traçar caminhos entre os vãos do tempo, correr riscos, saber-se finito: o fim da linha é logo ali. Autobiografar-se, sublinhar-se, e, por fim, apagar-se – restam riscos a serem cogitados pela intuição alheia: rascunho. O tempo-linha, a ação-grafia, o resto, silêncio.

sábado, 10 de setembro de 2011

Doze responsáveis e um réu:



Uma obra prima da sétima arte. Os quadros que constituem Doze homens e uma sentença (Twelve angry men), de 1957, nos revelam as faces dos doze integrantes de um juri que deve decidir o destino de um suposto assassino. O filme começa quando o juíz dá ordem para que o grupo se reuna na sala destinada às reuniões do juri a fim de tratarem do caso em questão. Como imagem que se sustenta pela passagem dos fotogramas que nos levam à sala de reunião do júri, o rosto daquele que talvez morrerá na cadeira elétrica.

O veredito parece certo: o réu é evidentemente culpado. Cabe uma resposta rápida, já que o tempo urge, e cada qual têm sua vida lá fora, entre partidas de beisebol e visitas ao cinema. A vida daquele rapaz que é acusado de ter matado seu pai é, nesse momento, um acaso que impõe a coincidência do encontro entre esses doze. Mas um deles faz-se obstáculo à pressa dos demais, um obstáculo decorrente de uma dúvida razoável, racional, sobre se o garoto é ou não culpado.

 No filme apreciarão um show de atuação de todo o elenco, além de muito bem elaborados diálogos que tocam profundamente no universo psicológico de cada participante da assembleia que se reune numa pequena sala. A pequenês do espaço exigiu um jogo de câmeras hábil que Lumet soube dirigir com maestria. Aqui um close, ali, uma geral, mais a frente uma cena no banheiro contínuo que acompanha a sala e serve de à parte para um diálogo mais fechado. A discussão gera uma tensão que se amplifica no minúsculo recinto que guarda os debatedores, por vezes atingindo um nível de pressão tal que ensaia explosão. A chuva lá fora, de fato - àgua que do céu precipita - transforma-se em símbolo, a noite traz a luz, e o final da película envolve-nos naquilo que a trama desenvolveu.

A música, por sua vez, não é senhora nem vassala do todo, faz-se notar como instrumento à favor da peça, e não vedete que ocupa espaços indevidos. Trata-se de um filme que nos prende do começo ao fim, modelo de filme de baixo custo, que tem no elenco afinado, e numa direção inteligente, inestimável riqueza que a obra prima encerra. Nada que fuja à regra, dado que este é um filme do mestre Sidney Lumet. Nesse caso, poderíamos afirmar, citando outros títulos do mesmo diretor, que cada um daqueles homens teve seu dia de cão, numa rede de intrigas que os armadilhou em suas próprias dúvidas, em busca dos fatos, e da verdade por trás dos fatos. Vale a pena assistir.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Lobão e Beethoven in concert:

 

Percebam que a célula rítmica que introduz a canção lobaniana acima citada é citação daquela que dá início à 5ª sinfonia de Beethoven, 1º movimento, allegro con brio …

Por certo o arranjador se aproveitou do tema, em seu aspecto rítmico, como inteligente comentário na peça rock de Lobão. De qualquer forma o paulistano tem um que de romântico, ou o contrário, pois o compositor alemão equilibra-se entre o romantismo do XIX e o classicismo. Tanto quanto apaixonado, excêntrico. Aguém bate a minha porta, preciso interromper esse post. Não são 4 horas, mas, de qualquer forma, a vida é doce … depressa demais.

Identidades fluidas: o homo-sapiens conexus

 

Em casa, nas lan houses espalhadas pelo mundo, através do celular, pelo pager, onde quer que seja, estamos, enfim, conectados. O judeu, o cristão, o ateu, o mulçumano, o budista: aquele, aquela, o outro, em certa medida, num âmbito estranho, faz-se eu. Agora a dança da menina ousada que insinua-se na cam, depois, um vídeo sobre a crise no oriente médio: tudo que é medo, tesão, ficção, vira mídia. O homo-sapiens conexus, novo Adão perdido em terras globais, saboreia novos frutos a cada agora, e o antes eterno, vira efêmero, liquefaz-se no vão instante de cada momento.

O conceito de cultura, pedra basilar da antropologia, já foi determinada pela geografia quando os deuses europeus se aventuraram por terras negras em busca de riquezas várias. Tão distintos eram aqueles selvagens, nossos admiráveis selvagens, nós, tão encantados por pronomes possessivos. Uma cultura menos desenvolvida, sim, mas nada que uma boa doutrinação não resolvesse. Ou será que essa atmosfera primitiva não constituiria o homem como tal, como é, animal? Etnografias depois, muito sangue derramado, tratados, tratados e mais tratados, letras mil em livros na estante. Margaret Mead, Malinowski, Clifford Geertz, e etc, muitos etceteras mais.

Não obstante, ao que pese toda a alta cultura semeada, ainda nos sabemos etnocêntricos, ainda que não nos confessemos, e a vaidade fala mais alto. O judeu é o cão, diz o pseudo-cristão, o mulçumano, terrorista, o ateu é um à-toa, alienado, o budista, um zen sem inteligência prática, o pobre é tolo cativo, o rico é corrupto, o padre, hipócrita pedófilo, o preto é ladrão, o branco é racista, o gay, pedófilo, promíscuo, e todos são, porque distintos, equivocados.

Enquanto isso os menos pragmáticos ainda buscam respostas nos livros, e por mais que a prateleira pese ensaiando ceder e as traças corroam os papeis - prefaciando a decomposição dos corpos - a busca por uma Verdade parece insurgir contra a pós-moderna relatividade. Ocorre que, no campo de balha intersubjetivo, a opinião acaba por ganhar - porque reflexo do eu - o status de verdade, já que o egoísmo vira a Verdade. Aqui, mais uma ideia à venda, ali, um novo conceito filosófico, no outro canto um menino morre de inanição, e enquanto alguém, no escuro de seu quarto, assiste a cena comovente, o outro se masturba escondido do outro lado da tela. No dia seguinte ambos se encontram, e um continua a ser o inferno do outro. Cada um tem sua opinião, e respeita aquela alheia, mas raras vezes sem o otimismo de quem sabe que o outro evoluirá, será enfim diferente. Se ateu, tornar-se-á cristão, no mínimo budista, se cristão, um ateu convicto e feliz.

O culturalista jamaicano Stuart Hall tem razão. A identidade cultural na pós-modernidade já não mais se determina geograficamente. Mas também é perigoso fazer da religião, da cor ou da orientação sexual o rótulo inequívoco, preciso, que determine o outro de antemão. Somos sempre atravessados por redes invisíveis, virtuais, pixels de informação que, não obstante iluminem, nem sempre espantam a sombra. Esperemos por um mundo mais igual, deveras, mais igual pelas diferenças. Talvez a grande questão é saber o que nos faz tão iguais, nós que somos assim, tão diferentes.

Jeferson Torres

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Pela liberdade na internet:

 

Proteste já contra o policiamento diurno de sua navegação internética! : acesse:  http://www.avaaz.org/po/save_brazils_internet/?cl=1199863114&v=9819

 

Caros amigos de todo o Brasil,


Na semana que vem, o Congresso poderá votar um projeto de lei que representa um golpe contra a liberdade da internet dos brasileiros. A pressão da opinião pública barrou o projeto de lei em 2009 e nós podemos fazer isso de novo. Vamos usar a web para derrotar esse projeto de lei!Envie agora mesmo uma mensagem aos parlamentares sobre o assunto:

 

Na semana que vem, o Congresso poderá votar um projeto de lei que restringiria radicalmente a liberdade da internet no Brasil, criminalizando atividades on-line cotidianas tais como compartilhar músicas e restringir práticas essenciais para blogs.Temos apenas seis dias para barrar a votação.
A pressão da opinião pública derrotou um ataque contra a liberdade da internet em 2009 e nós podemos fazer isso de novo! O projeto de lei tramita neste momento em três comissões da Câmara dos Deputados e esses políticos estão observando atentamente a reação da opinião pública nos dias que antecedem à grande votação. Agora é nossa chance de lançar um protesto nacional e forçá-los a proteger as liberdades da internet.
O Brasil tem mais de 75 milhões de internautas e se nos unirmos nossas vozes poderão ser ensurdecedoras. Envie uma mensagem agora mesmo às lideranças das comissões de Constituição e Justiça, Ciência e Tecnologia e Segurança Pública e depois divulgue a campanha entre seus amigos e familiares em todo o Brasil:
http://www.avaaz.org/po/save_brazils_internet/?vl
O projeto de lei do deputado Azeredo sobre a internet supostamente teria o objetivo de nos proteger contra fraudadores e hackers. Porém, como alguém que faz uma cirurgia com uma motosserra, as normas excessivamente cautelosas impostas pelo projeto de lei trariam altíssimos custos sem de fato cumprir seu objetivo. Em vez de capturar os verdadeiros criminosos, elas penalizariam todos nós. Por esse motivo, até mesmo o importante site anti-pedofilia, o SaferNet é contra o PL Azeredo.
Se esse projeto de lei for aprovado, nossa privacidade e liberdade de expressão, criação e acesso on-line ficarão gravemente limitadas. Pior que isso, os provedores de internet que mantêm informações detalhadas sobre nosso histórico de navegação na internet passarão a ser“policiais virtuais” monitorando os usuários a todo momento.
O projeto de lei tem circulado em Brasília por mais de uma década, e a pressão da opinião pública já o derrotou antes. Em 2009, uma consulta pública sobre o “Marco Civil da Internet” barrou o andamento do projeto. Mas alguns meses atrás, o deputado Azeredo tentou apressar a aprovação no Congresso, usando os ataques de crackers aos sites do governo como desculpa. Um novo Congresso e uma maior conscientização sobre as amplas implicações do projeto de lei significam que nossas vozes poderão fazer a diferença. Envie agora mesmo uma mensagem às lideranças na Câmara:
http://www.avaaz.org/po/save_brazils_internet/?vl
Infelizmente, o PL Azeredo não é a única lei desse tipo. Em todo o mundo, na Índia, Turquia, Estados Unidos e outros países, a liberdade da internet está sob ataque promovido por iniciativas similares. Mas os membros da Avaaz nesses países estão se mobilizando. Vamos fazer a nossa parte neste movimento popular global em defesa da web barrando o PL Azeredo.

Com esperança,
Emma, David, Ricken, Maria Paz, Giulia, Rewan e a equipe da Avaaz

FONTES:
Petição do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, instituição parceira da Avaaz:
http://www.idec.org.br/campanhas/facadiferenca.aspx?idc=24
Liberdade de internautas no Brasil pode estar com os dias contados (Portal Imprensa):
http://portalimprensa.uol.com.br/noticias/brasil/43707/liberdade+de+internautas+no+brasil+pode+estar+com+os+dias+contados/
Entenda o que é o marco civil da internet (UOL):
http://tecnologia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2010/06/09/entenda-o-que-e-o-marco-civil-da-internet.jhtm
'AI-5 digital' volta a circular no Congresso (Rede Brasil Atual):
http://www.redebrasilatual.com.br/temas/tecnologia/2011/06/ai-5-digital-volta-a-circular-pelo-congresso

 

 

A liberdade dos internautas brasileiros pode sofrer um duro golpe. O deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) quer inibir diversas ações online, como o compartilhamento de conteúdos, a transferência de músicas já compradas de um CD para um computador ou outros dispositivos eletrônicos e o desbloqueio de aparelhos celulares. É o que alerta o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) ao Projeto de Lei 84/99. A iniciativa apresenta, também, punições para crimes digitais. As informações são do portal Knight Center for Journalism in the Americas.
Segundo a Folha de S. Paulo, cita o portal, usuários da internet classificaram o PL como um "AI-5 digital", ou seja, uma forma de privação à liberdade e ao direito de se usar a rede internacional de computadores. Para mostrar sua rejeição, o Idec lançou a campanha "Consumidores contra o PL Azeredo". Além dela, a campanha "Mega Não" também combate a aprovação do projeto. Na última quinta-feira (28), o deputado Emiliano José (PT-BA) entregou ao presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, deputado Bruno Araújo (PSDB-PE), petição contrária à proposta com 163 mil assinaturas, de acordo com o Observatório do Direito à Comunicação.
Entre os problemas apontados no PL, conforme o Idec, estão o período em que os provedores de internet precisam guardar os registros dos usuários, estipulado em três anos, e a previsão de penas excessivamente duras para delitos simples, assim como a criação de tipos penais considerados amplos.

Fonte: http://portalimprensa.uol.com.br/noticias/brasil/43707/liberdade+de+internautas+no+brasil+pode+estar+com+os+dias+contados/ Visitado em 4 de agosto de 2011

'AI-5 digital' volta a circular no Congresso

Abandonado desde 2009, projeto polêmico é resgatado pelo agora deputado Eduardo Azeredo

Por: Raoni Scandiuzzi, Rede Brasil Atual

Publicado em 28/06/2011, 18:50

Última atualização em 29/06/2011, 14:22

'AI-5 digital' volta a circular no Congresso

Eduardo Azeredo, deputado do PSDB, que pretende votar seu projeto sobre vigilância na internet (Foto: ABr/Arquivo)

São Paulo – Em tramitação há três anos no Congresso Nacional, o substitutivo de projetos de lei de Eduardo Azeredo (PSDB-MG) que visam a combater crimes cometidos na internet foi retomado. O substitutivo do PL 84/99 relatado pelo mineiro quando senador foi reencaminhado à Câmara, onde tem, como relator, o próprio Azeredo, que atualmente cumpre mandato como deputado. O texto está na pauta de votação da Comissão de Ciência e Tecnologia da Casa para esta quarta-feira (29).

O projeto foi apelidado de "AI-5 Digital" por críticos das medidas, defensores de liberdade na rede, incluindo o direito de compartilhar arquivos. Depois de ficar parado em virtude de consulta pública para o Marco Civil da Internet, em 2009. A retomada foi justificada pelas ações de crackers contra sites do governo brasileiro na semana passada. Em tom de crítica, o ativista digital João Carlos Caribé levanta até a suspeita de que os ataques tenham sido "fabricados" com a finalidade de trazer de volta o polêmico assunto.

O novo texto de Azeredo traz algumas modificações em relação ao original. Com a atualização, os provedores não precisariam denunciar às autoridades "indícios de práticas de crimes". O ponto era um dos mais polêmicos, por poder provocar um estado de constante vigilantismo na internet. Além dessa alteração, outros termos foram substituídos para evitar novas controvérsias.

Ainda assim, Caribé defende que o projeto “não melhorou a ponto de se tornar aceitável”. O ativista garante que a essência da matéria continua a mesma e aponta aspectos que considera problemáticos e que pouco ajudariam no combate a cibercriminosos. “A questão mais polêmica é a guarda dos logs (os dados de endereçamento eletrônico da origem, hora, data e a referência GMT da conexão) por três anos. Isto é um absurdo, acarreta um custo significativo e serve de alerta para o criminoso se prevenir, dificultando uma eventual investigação”, explica Caribé.

“O projeto de Azeredo já circula há mais de dez anos no Congresso, ele está cercado de polêmicas e tem um estigma tão ruim que muito dificilmente vai conseguir avançar”, prevê o ativista. Para ele, a vontade do deputado tucano é o principal motor para retomar a tentativa de votar a iniciativa. “Ele era senador quando propôs o projeto, não se candidatou para reeleição no Senado, mas foi ser deputado. É ele quem está articulando essa proposta na Câmara”, observa Caribé.

Embate

Como o projeto já passou uma vez pela Câmara e foi votado no Senado, não é passível de sofrer mudanças significativas, pois voltaria à estaca zero. Isso explicaria a opção de Azeredo por apenas suprimir ou alterar alguns pontos. O agora deputado critica o uso da expressão "AI-5 Digital", classificando o apelido como "erro histórico".

Internautas críticos do texto prometem fazer campanhas nas mídias sociais. Usando as expressões "Mega Não" e "AI-5 Digital" como hashtags (expressões precedidas pelo símbolo "#", usadas para delimitar e agrupar mensagens por tema).

 

Fonte: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/tecnologia/2011/06/ai-5-digital-volta-a-circular-pelo-congresso

 

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Qualquer semelhança provavelmente não é mera coincidência:

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sexta-feira, 22 de julho de 2011

A mística litero-musical de Raul Seixas: Gitâ:

 

Trata-se de uma obra litero-musical que toma como base uma outra, literária, a saber, Gita, peça clássica do hinduísmo que faz parte de outra obra, maior, a saber: Mahabarata. É uma narrativa mito-poética sobre a guerra humana entre bem e mal como duas faces de uma mesma moeda.É curioso que Seixas e Coelho tenham composto a música em menos de 15 minutos, mas com a base que os sustentava, é de se esperar. As obras de fundo do clip são de Salvador Dali, Rene Magritte e Ierominus Bosch. Foi o 1º disco de ouro de Raul. Obra prima, sem comentários. Digna de menção entre os clássicos dos clássicos da música popular brasileira, e que nos instiga os mais sublimes sentimentos místicos. Deus é o eterno que em tudo se manifesta, é o alfa e o ômega: o início, o fim e o meio.

“Terra, água, fogo, ar, éter, pensamento, intelecto, e consciência pessoal são os oito componentes que integram minha natureza material.


Esta é minha natureza inferior. Conhece agora, oh tu, de braço poderoso, minha outra natureza, a superior, o elemento vital, que mantém o universo. Sabe que esta minha dupla natureza é a fecunda matriz de todos os seres. Sou o princípio do mundo e sou também o seu fim. (…) Eu sou o filho de Kuntî, o sabor da água, a luz do Sol e da Lua, pranava de todos os Vedas, o som do éter e a virilidade dos homens. Sou puro perfume da terra, a luminosidade no fogo, vida em todos os seres e austeridade nos ascetas.

Sabe, filho de Prithâ, que sou o eterno germe de tudo quanto existe, sou a sabedoria dos sábios e o poder dos poderosos. Sou a força do forte isento de apetites  paixões; em todas as criaturas, oh príncipe dos Bhâratas, sou o desejo que não contraria a santa lei.

Entende que de Mim procedem as naturezas individuais formadas pelas qualidades satva, rajas e tamas. Eu não estou nelas, mas elas estão em Mim”. (Grifo meu)

Bagavad Gitâ – Canto VII: Yoga do superconhecimento (Vijnâna-Yoga).

 

“Krishna – encarnação do espírito supremo – Arjuna e os Pândavas – ou São Miguel e seus anjos – representam a humanidade – como conjunto e como indivíduo –, com seus desejos e tendência à perfeição e ao Sagrado;  enquanto que, Duryodhana e seus Kurus – Lúcifer e Satanás com seus demônios – são a outra parte do homem, as forças do mal tais como o ódio, a luxúria, o egoísmo… Kurukshetra é a própria natureza de cada homem e da humanidade dividida em dois reinos antagônicos; Cristo e anticristo. (…). A lenda da queda dos anjos se inspirou (imediata ou mediatamente) no Bhagavad-Gitâ, na mitologia babilônica [Ormuzd e Ahriman], na mitologia iraniana …? Tudo é produto de uma mesma mentalidade oriental? A coincidência é manifesta”

QUEVEDO, Oscar-Gonzalez, S.J. (Pe.).Antes que os demônios voltem. São Paulo: Loyola, 1989, p.276-277.

Gitâ: o início, o fim e o meio.

Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro – Ap.22,13

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Sobre pedras e pessoas

 

Como persistissem em interrogá-lo, ergueu-se e lhes disse: “Quem dentre vos estiver sem pecado atire a primeira pedra!” Jo 8,7.

 

O ser humano é um animal que odeia. Caim mata Abel, os irmãos de José vendem-no como escravo aos egípcios, que, mais a frente, escravizarão o povo de Israel, Davi é perseguido pelo seu próprio filho que deseja poder, poder, poder, sem perceber que, enfim, nada mais pode senão morrer. Jesus também foi perseguido por se auto titular o messias prometido pelos oráculos dos profetas.

Atenienses guerriam contra espartanos, que, por sua vez, revidam contra atenienses. Napoleão insurge na França como epíteto da revolução francesa: cabeças de padres e reis rolam por ai. Depois é guerra santa, a Jihad, que uma fatia do islamismo prega como viés teológico para a “salvação das almas perdidas”. Condenar todo e qualquer mulçumano pela barbárie desse grupo seria tão incoerente como condenar todo e qualquer padre como pederastra porque um certo número deles são pegos com a mão na botija – ou em outro lugar.

Não obstante, uma nova “pedra de salvação” surge em meio a celeuma: o ateísmo. Alguns preferem fazer de Deus – qualquer um deles – ou da religião o bode expiatório de sua revolta, aproveitando inteligentemente a carona naqueles que, por sua vez, fazem da religião uma desculpa para sua vaidade. Se é incoerente condenar todo e qualquer ateu ao inferno, é coerente crer que a ira contra religiosos, sejam eles de qualquer denominação, cor, raça, sexo ou nacionalidade, pode sim se converter no combustível de uma barbárie tal qual aquelas que alguns religiosos cometeram ao longo da história por conta de sua vaidade. E não se engane, desde sempre, “tudo é vaidade e correr atrás do vento”. Noves fora, somos todos animais que odeiam, ainda que o clamor pelo “mundo melhor” e a “comunhão universal” entre os povos possa fazer parecer o contrário. Talvez remédios poderíam resolver o problema, talvez camisas de força, mas isso não seria lição, antes, condição, a condição de prisioneiro: em suma, continuamos prisioneiros de nossas vaidades e de nosso ódio.

Nota: você pode discordar da verdade, revoltar-se contra ela, mas isso não muda a verdade.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Aurora, de F.W.Murnau: Cinema e metafísica

 


                                       F.W.Murnau

 

Cenas de Aurora:




 


Aurora, de F. W. Murnau (Sunrise, 1927), baseado no romance de Herrman Suderman,Viagem a Tilsit, é para mim o melhor filme do mundo. Quando se vê que o grande Eisenstein nada mais fazia senão juntar imagens com tanto esforço para produzir, por associação, alguma patriotada a serviço da propaganda comunista, aí é que a arte de Murnau nos surpreende por sua capacidade de conduzir, através do jogo de imagens, a algo que está acima de toda imagem e mesmo acima de nossa capacidade de expressão em palavras.

A trama se desenvolve em três níveis: o personagem (o ser humano), a natureza e o sobrenatural, tudo perfeitamente encaixado e sem nenhum apelo a uma linguagem indireta ou "hermética", no sentido de obscura, embora haja ali grandes doses de hermetismo no sentido de alquimia espiritual.

O tema de Aurora é o jogo entre as decisões humanas, as forças da natureza e a misteriosa providência que tudo ordena sem alterar a ordem aparente das coisas, sem produzir acontecimentos de ordem ostensivamente sobrenatural, e jogando apenas com os elementos naturais.

O filme começa com dois amantes — um fazendeiro de Tilsit e uma turista — tomando a decisão mais arbitrária que se possa imaginar, uma decisão que não é fundada em coisa nenhuma: fugir, sendo preciso, para isso, matar a mulher do fazendeiro. Essa decisão brota de uma paixão momentânea, uma extravagância fundada num mero desejo, que não corresponde ao sentido de vida nem da mulher (a moça que quer fugir com o fazendeiro), nem do fazendeiro e não está encaixada logicamente no quadro normal de possibilidades de suas vidas. A possibilidade normal seria tudo não passar de um episódio fortuito, algo como um namoro de férias - o que realmente a coisa era no fundo. Na hora em que eles decidem transformar este namoro de férias numa união duradoura sacramentada pelo homicídio, então Murnau começa a colocar um outro enredo em cima do enredo inicial.

Se a vida do personagem antes do caso amoroso tinha uma certa solidez, ele mesmo não estava consciente disso, ou então teria rejeitado taxativamente a proposta da amante. Mas ele a aceita. E se deixa sair da lógica de sua vida para entrar nas névoas do imaginário. Não por coincidência, a cena em que eles se encontram para tramar o homicídio se dá num lamaçal e entre névoas. Ele atravessa uma bruma, como quem vai sair do plano real para ingressar no plano imaginário, onde vai encontrar sua espectadora.

O resumo do filme é o progressivo retorno desse mundo mítico à realidade que o personagem havia abandonado. Após aquele breve instante em que ele prefere o imaginário ao real, por todo o resto do tempo o que vemos são as operações do destino para devolvê-lo à vida real. Mas esse retorno não é fácil. No primeiro instante, a reação do fazendeiro é simplesmente de ordem sentimental, o sentimento de pena pela esposa que ele não amava, e arrependimento. Mas esse arrependimento não é ainda uma conquista sua, pois ele se dá de maneira passiva e na esfera do imediato. O retorno à realidade terá de passar pela reconstrução de todos os elementos que foram compondo a sua vida.

Quando, após a tentativa de homicídio falhada, ele acompanha a esposa até a cidade, ela ainda está muito triste e ele tenta recomeçar o diálogo com ela – afinal, ele tinha se tornado um estranho. Ele tenta retomar a condição de marido, como quem diz: "Eu não sou um assassino, eu não sou um estranho", mas ele, de fato, não é mais o mesmo. Ele terá de reencontrar sua velha identidade, e evidentemente isso não é tão fácil.

Temos então duas cenas decisivas: aquela em que na casa de chá ele oferece um bolinho a ela, e ela acaba não aceitando; e a cena do casamento a que eles assistem na igreja. Nesse casamento, novamente não por coincidência, os convidados estão à porta, esperando a saída dos noivos, e quem sai são eles, que vieram andando na frente dos noivos e nem percebem o que se passa em volta. Na igreja, ele toma novamente consciência do sentido do casamento, ou seja, do que ele tinha ido fazer ali, de por que é que ele estava ao lado daquela mulher que até poucas horas atrás já nada significava para ele. De certo modo, ele tem aí uma recapitulação de toda a sua existência.

No instante em que ele desiste de matar a esposa, ele já havia se arrependido por dentro, mas isso não era exatamente um arrependimento, no sentido cristão. Era remorso. Que é remorso? Um sentimento de culpa desesperador. O arrependimento é um sentimento de culpa acompanhado de alívio, de esperança de poder resgatar de algum modo o que foi perdido. O homem só passa por isso na igreja: neste momento, ele troca o remorso pelo arrependimento.

Mas aí a trama ainda não complicou. É preciso que ele confirme esta intenção. Ele precisa adquirir certeza absoluta de sua identidade recuperada. No instante em que aceitou matar, ele jogou fora toda a sua vida, ele agiu como se fosse um outro. Um outro que teria uma outra vida, num outro lugar, com outra mulher. Na cena em que a amante fala da vida na cidade e ele se vê dançando nas boates, ele imagina para si uma outra biografia, que começaria miraculosamente do nada. Após ter construído toda uma vida como homem do campo, ele repentinamente se vê em outra cena, e para vivê-la realmente ele precisaria ter tido toda uma outra vida, precisaria trabalhar em outra coisa, ter nascido em outro lugar. O apelo dessa vida imaginária o entorpece de tal maneira que ele perde sua identidade: ele não está mais conectado nem com a esposa, nem com a profissão, nem com o ambiente material, com nada. Ele está desligado do sentido da vida, e por isto esta vida lhe parece vazia e tediosa — é a vaidade psicológica, que projeta na vida em torno a miséria interior do homem incapaz de assumir seu dever vital.

O restante do filme vai encaixá-lo de volta, primeiro, em sua vida; segundo, em seu casamento; terceiro, no lugar onde ele construiu a sua vida, para de certo modo devolvê-lo ao sentido da vida que ele tinha abandonado momentaneamente por um sonho maluco. E como se dará isso? Ele será obrigado, pelo desenrolar dos acontecimentos, a apostar de novo, repetidamente, no valor de tudo aquilo que tinha desprezado, e terá de apostar cada vez mais alto. Ele reconquista por um esforço de vontade consciente tudo o que havia abandonado por vaidade.

Ele começa por pedir perdão; depois oferece o bolinho; em seguida, na igreja, tem um segundo arrependimento e faz como que um voto; tira então uma fotografia, que é como uma fotografia de casamento; e por fim vai para um parque de diversões, que seria o equivalente da viagem durante uma lua-de-mel. Com tudo isso, ele recuperou sua identidade de casado, mas não recuperou ainda o sentido da sua vida. Para isto ele precisará ainda apostar mais um pouco.

E a aposta será uma segunda tentação, que já não vem por meio humano, mas por meio dos elementos da natureza, quase que propositadamente mobilizados para esse fim, que executam a intenção dele, isto é, afogam realmente a mulher que ele antes tinha tentado afogar. Veja; aquilo que ele sonhou, já não é mais ele que está executando, é um poder imensamente maior que o dele, ou seja, ele pediu e o céu executou. Nesta hora, ele tem de fazer a aposta decisiva para salvar aquela mulher que ele quisera matar.

Enquanto vai retornando para casa, dá-se a tempestade, e nesse retorno é que se dá também o retorno dele à plena posse do sentido da sua vida. Ele vai dizendo uma série de "sins" a tudo aquilo a que antes tinha dito "não". Mas quem se opõe a esse sim, quem é o tentador que lhe oferece novamente o não? Agora já não é o demônio: é o próprio Deus, para saber se ele quer mesmo. O filme é teologicamente exato ao mostrar que o diabo age dominando a imaginação, a fantasia e os desejos, enquanto Deus age através dos acontecimentos reais, do reino da natureza transformado em mensageiro do sobrenatural.

O personagem será então obrigado a reafirmar com muito mais força sua adesão a todos os valores que havia desprezado. E terá agora de arriscar a sua própria vida para defendê-los e, mais ainda, arriscar de certo modo a própria salvação de sua alma; pois não pode evitar o sentimento de revolta contra os céus quando pensa que a mulher morreu, e ele se sente preso numa armadilha terrível montada pelo diabo, que executou o pedido do qual ele já tinha desistido. Ele tem de reafirmar e apostar tudo de novo, desta vez lutando contra todas as probabilidades aparentes.

Aurora, na verdade, transcorre para trás. A mudança do fazendeiro para a cidade, planejada no começo, não se realiza, e tudo o que é importante acontece no retorno da cidade para o campo, onde ele vai novamente botar os pés no chão. O filme tem algo de "romance de formação" (Bildungsroman), gênero tipicamente alemão, que tem como conclusão a formação da personalidade humana, onde o indivíduo, através de seus erros, se transforma num homem de verdade. Um exemplo é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister; Herman Hesse também fez isso em O Lobo da Estepe e em Demian. São romances cuja única conclusão é o crescimento humano em direção à maturidade. Mas esse crescimento é sempre uma diminuição, é sempre o indivíduo voltando à terra, depois de haver sonhado alguma maluquice e viajado por um céu de mentira. É uma apologia caracteristicamente germânica do "pão-pão, queijo-queijo" como valor supremo da existência. A idéia, portanto, é de que o sentido da existência está colocado na própria existência: ela tem sentido em si mesma, e não num outro mundo colocado acima deste, como o mundo imaginário que a amante oferece ao personagem, e que é mais ou menos como o mundo da falsa vocação teatral de Wilhelm Meister. Meister tem o sonho de ser ator, mas ele não serve para ser ator, ele não é um ator, ele é um burguês no fim das contas, e sua descoberta de que é um burguês de classe média alta, um sólido burguês, é a verdadeira educação dele. A vida cotidiana do burguês, na medida em que é real, e pelo simples fato de ser real, tem em si uma força mágica superior a toda imaginação, porque não é constituída de imagens, tem uma tridimensionalidade que a fantasia não tem.

O imaginário como alternativa oferecida pelo tentador diabólico é um mundo bidimensional, um mundo só de imagens, imagens no meio da névoa. A cena em que o fazendeiro e a amante conversam no pântano remete à carta 18 do Tarô, que é A Lua: o homem de um lado, a mulher de outro, como o cão e o lobo; a água em baixo e a lua no meio, formando um losango. Esse "mundo da lua" é o mundo dos reflexos na água, onde as coisas não acontecem verdadeiramente, apenas parece que vão acontecer. A imagem pode ser encantadora, mas ela não tem a tridimensionalidade, a profundidade da vida real. É no retorno à terra que o homem encontra o verdadeiro céu, o sentido da vida.

Ora, a coisa mais espantosa desta vida real é justamente que nela as coisas não chegam a ter uma explicação final, ao passo que o mundo imaginário é facilmente compreensível e explicável, pelo simples fato de que foi você mesmo que o imaginou. Na hora em que o personagem imagina uma outra vida na cidade, tudo para ele faz sentido, porque é ele mesmo quem quer que as coisas sejam assim ou assado. Aí a relação causa e efeito é perfeitamente nítida, ao passo que, no retorno à vida real, o jogo de causa e efeito é infinitamente mais complicado, mais sutil, e nunca se pode dizer que isto aconteceu por causa disto ou daquilo exclusivamente; há sempre um tecido, um emaranhado de causas, e nunca se consegue assinalar uma linha causal única.

Então, por que a tempestade acontece justamente no momento em que ele estava voltando? Ela poderia acontecer em qualquer outro momento. Não há no filme a menor insinuação mágica a respeito disso. Não foi um anjo quem fez cair a tempestade, mas, se ela não acontecesse, certamente a resolução do sentido da vida desse indivíduo tomaria uma outra direção. As causas naturais interferem e não se sabe nunca se existe nelas um propósito ou não. Não se pode dizer propriamente: "Deus fez cair a tempestade para tal ou qual finalidade ", porque Deus não aparece no filme, só a tempestade. Cada um está livre para interpretar isso como uma intencionalidade divina ou como uma casualidade, mas nos dois casos este fato entra como elemento componente de umsentido geral.

Quando cai a tempestade e a mulher se afoga, nada no filme nos permite interpretar que foi Deus que a fez cair propositadamente para ensinar algo ao personagem. Deus não aparece, não há a menor insinuação de um sentido religioso evidente envolvido no caso. Nós simplesmente vemos a tempestade, vemos o que aconteceu. Não podemos dizer que foi uma causa divina, ou uma causa natural fortuita, mas em qualquer dos casos esse acontecimento se encaixa não na ordem das causas, mas na ordem do sentido, e e força causal divina não aparece como causa eficiente e sim só como causa final, que age através da combinação natural das causas eficientes. Qualquer que seja a causa, para o personagem, aquele acontecimento tem um sentido muito nítido, não subjetivamente, mas objetivamente, dentro da vida real dele. E que sentido é esse? O da intenção maligna da qual ele já havia desistido, e que é realizada justamente no instante em que ele a tinha renegado e em que ele a temia. Os seus pensamentos viram ações no exato instante em que ele não os aceita mais. Este sentido não é subjetivo, não é o personagem quem interpreta as coisas assim: elas simplesmente são assim, em si mesmas e objetivamente. Sem precisar recorrer à idéia de uma providência que propositadamente está "fazendo acontecer" isto ou aquilo - e esta é uma das coisas mais bonitas do filme - o evento tem um sentido objetivo, e este sentido, por meios puramente naturais, vai na direção indicada pela intencionalidade divina, que é a reconquista do sentido da vida. É uma espécie de ironia da natureza, e por momentos o personagem se sente vítima desta ironia. Ela pode ser premeditada ou fortuita, isso não a torna menos irônica. Para ele, naquela hora, pouco interessa se foi o diabo que fez chover, para prejudicá-lo, ou se a natureza inocentemente e quase que mecanicamente produziu a chuva. A tempestade é irônica nos dois casos, e em ambos os casos faz sentido.

Há aí uma distinção muito nítida entre o a ordem das causas e a ordem do sentido. Só que esse sentido não é subjetivo, não é apenas humano, é um sentido real; dentro do contexto dos acontecimentos, a tempestade tem uma significação nítida, é uma ironia cruel da natureza, pouco importando se foi intencional ou não. Na verdade, se não foi intencional é até mais cruel, porque então o destino do personagem parece mais absurdo ainda. De repente, ele cai totalmente dentro do absurdo que ele mesmo havia premeditado. Se houve intencionalidade por trás dos fatos, foi uma intencionalidade pedagógica, e se não houve, foi uma coincidência irônica.

Essa ironia já aparece no episódio do cachorro. Por que o cachorro, na hora que eles vão sair de barco, sai latindo atrás da dona? É porque ele anteviu que ia acontecer uma desgraça? Ou é simplesmente porque ele quer ir atrás da dona? O filme nada diz a esse respeito. Você está livre para interpretar como quiser. Mas como quer que se interprete a causa que fez o cachorro se mover, o que importa não é a causa, mas o sentido que esse episódio acaba tendo no conjunto. Por quê? Porque, ao retornar para deixar o cachorro em casa, o homem poderia ter desistido da viagem e do plano assassino. O cachorro aparece ou como uma casualidade ou como uma intencionalidade, que poderia ter salvado a mulher antecipadamente e bloqueado o curso posterior dos acontecimentos. Poderia, mas falhou. O cachorro não teve força suficiente, é um elemento natural demasiado isolado e fraco para por si determinar o rumo dos acontecimentos. O cachorro, pura sanidade natural, é impotente para deter o mal; para isso será preciso a mobilização de todos os elementos da natureza — a tempestade.

Mas em todos os instantes o que se vê é que, não importando a causa, o sentido é nítido. E esse sentido não é subjetivo. De fato, a ação do cachorro naquele momento poderia ter impedido a desgraça. Quase impediu. E esta é outra característica desse filme: o tempo todo você tenta prever o que vai acontecer em seguida, e essa previsão toma o aspecto de um voto de fé: você deseja que as coisas tomem um certo rumo, você torce pára que isso aconteça — e, nunca acontecendo o que você deseja, no fim o resultado é, pelos meios mais impremeditados e surpreendentes, exatamente aquele que você desejava. Na hora em que você sabe que o sujeito vai tomar o barco para matar aquela inocente mulherzinha, você deseja que ele não faça isto. E na hora em que o cachorro começa a latir e vai atrás, o cachorro está realizando de certa maneira o seu desejo, mas ele falha. Nesta cena, todo mundo vacila: você, o cachorro, o personagem, a mulher – ela também não sabe direito o que vai acontecer. Ela também está numa interrogação. Todos esses elementos, todos esses fatos têm sempre um sentido muito nítido, sempre referido ao antecedente e ao conseqüente. Em nenhum momento você depende da interpretação subjetiva que os personagens fazem.

A partir de elementos psicológicos simples, cria-se esta história profundamente enigmática na qual todos os elementos concorrem, afinal de contas, para uma tomada de consciência e para que o personagem retome posse da sua vida. Está subentendido no filme inteiro que tudo está concorrendo para um sentido final. Mas se isto ocorre conforme uma premeditação ou não, esta é uma questão deixada em suspenso. Faz parte da realidade da vida você não saber quais são os elementos que determinaram seu destino. Mas também faz parte da vida você poder compreender o sentido do que está acontecendo. Eu não sei quem foi que fez chover, nem com qual intenção fez chover, eu sei que para a ordem constitutiva da minha vida, neste momento, a chuva tem um sentido muito nítido. E o sentido, o que é? É a obrigatoriedade moral de uma ação, que por sua vez faça sentido dentro do caminhar da minha vida e dentro de minha própria identidade. Sendo eu quem sou, vivendo do jeito que vivo, tenho a obrigação de fazer isto assim e assado, pois só assim minha vida fará sentido. Viktor Frankl daria pulos de entusiasmo se visse este filme.

A interpretação metafísica fica condicionada a uma interpretação ética, que a precede de certo modo. Pouco importando se existe uma providência por trás de tudo ou não, o sentido dos fatos se impõe na medida em que impõe a obrigação de agir de uma determinada maneira, porque é a única que faz sentido. O problema da providência está colocado não na esfera causal, mas na esfera do sentido, pouco importando se essa providência age através de causas naturais ou sobrenaturais.

A chuva pode ser uma mera coincidência. Veja-se isto do ponto de vista de Deus. Se já estivesse predeterminado por leis naturais que iria chover naquele determinado instante, Deus certamente sabia disso, e não precisaria mandar uma chuva especialmente para que as coisas se resolvessem desta ou daquela maneira. A simples somatória de causas naturais e humanas é suficiente para criar um sentido. A providência está aí para quê, então? Para criar e manter o sentido.

A providência, sendo sobrenatural, não precisa no entanto recorrer a meios sobrenaturais. Do simples jogo das causas naturais e humanas em número indefinido, haverá um resultado x. Não era necessário uma premeditação para aquele caso específico: estava já tudo ordenado, de tal modo que o homem, que é um ser pensante e que tende sempre a criar uma unidade de sentido em sua vida, aproveitaria, para realizar esse sentido, os acontecimentos quaisquer que fossem. Desta maneira, o próprio caráter fortuito dos acontecimentos é de certo modo superado. São fortuitos quanto à sua causalidade eficiente, isto é, àquilo que os desencadeou, mas não quanto à sua causa final. Ou seja: um monte de causas eficientes dispersas de modo fortuito podem concorrer a uma causa final de natureza fundamentalmente boa. Este é um elemento da filosofia de Leibniz (Princípio do Bem Maior). Não sei se Murnau pensou em Leibniz nessa hora, mas para ser leibniziano não é preciso ter lido Leibniz: é uma questão de personalidade e de afinidade espiritual espontânea. Em todo caso, não é inútil lembrar que, antes de se dedicar ao cinema, Murnau estudou filosofia e teologia.

Num outro filme dele, Tabu, há uma mensagem de sentido aparentemente contrário: a causalidade humana e natural concorrendo para um desenlace trágico. Isso também pode acontecer. De qualquer modo, se tudo termina em comédia (quando tudo termina bem é comédia, por mais que a gente sofra) ou em tragédia é coisa que não é decidida na ordem das causas eficientes, mas na ordem da causa final, e com isso escapamos da famosa polêmica entre determinismo e livre-arbítrio.

As duas coisas de certo modo se exigem mutuamente; não há como conceber uma sem a outra. Existe determinismo na medida em que certas causas desencadeadas vão fatalmente produzir certos resultados. Podemos tomar as causas naturais que aparecem neste filme, como o comportamento do cachorro e a tempestade, como simples resultados de leis naturais. Há processos naturais que explicam esses fatos. Pode estar tudo predeterminado na ordem das causas eficientes, mas nada pode estar predeterminado com relação ao fim, à finalidade. Não haveria nenhum sentido em criar um ser capaz de escolher, capaz de agir, capaz de ter culpa inclusive, se a finalidade de vida dele já estivesse dada infalivelmente de antemão. Isso seria um nonsense: não é necessário um ator consciente para desempenhar um papel mecânico; não seria preciso um ser tão inteligente quanto o homem para desempenhar esse papel. Portanto, existe uma certa margem de manobra dentro mesmo do determinismo da natureza. O sentido da vida existe, mas sua realização pelo homem é eminentemente falível.

Podemos dizer que o cachorro "não teria" outra alternativa senão ir atrás da dona, porque esse é seu instinto, e a chuva também não teria outra alternativa senão cair naquele preciso momento. O homem é que tem a alternativa de entender ou não entender o que está se passando e de dirigir a vida dele num sentido que esteja harmonizado com quadro natural, com o seu dever e o sentido da sua vida. Para realizar o sentido de sua vida, ele precisa compreender o que se passa em torno, e compreender em quê essas coisas o influenciam.

Os fatos (como por exemplo a amante, que não existia na vida do personagem e que chega de férias a um determinado local num determinado momento, ou seja, faz uma intervenção) vão se sucedendo e vêm do ambiente em torno. O indivíduo mesmo é que entende ou não entende. E para não entender, basta ele se desligar por um momentodeste tecido denso da causalidade e entrar num outro mundo onde ele próprio é a única causa; que é o mundo imaginário, um mundo inteiramente lógico e nítido, onde ele inventa as causas e os efeitos se seguem da maneira mais lógica possível. É a lógica do plano criminoso proposto pela visitante: nós matamos a sua mulher e vamos para a cidade, e você vai morar lá comigo e vamos dançar naquela boate onde sempre vou, etc., etc., etc. Tudo isso é muito lógico, de maneira linear.

Mas, no retorno à vida real, as causalidades não são mais lineares, mas concomitantes e em número inabarcável. A conexão entre elas pode ser percebida ou não, porque o indivíduo mesmo é um elo de muitas cadeias causais cruzadas. Uma coisa é acontecer uma chuva e outra coisa é acontecer a chuva na hora em que você está ali. Mesmo do ponto de vista puramente natural, do ponto de vista físico, não é a mesma coisa chover sobre um terreno onde não há nenhum ser vivo, sobre um terreno onde há plantas, sobre um terreno onde há bichos e sobre um terreno onde há gente. As conseqüências da chuva fatalmente serão diferentes nesses vários casos. No caso aqui presente, chove na hora em que está ali exatamente aquele cidadão, portanto essa chuva já não é igual para todos, ela tem significados diferentes.

Ele poderia não ter compreendido a situação. Poderia ficar tão idiotizado pela morte da mulher que não sentisse sequer a ironia da situação, não tirasse a lição moral nela implícita. Ele consente em tirar esta lição porque continua dialogando moralmente com a natureza, perguntando: "O que você quer de mim?", ou seja: confiando no sentido da vida mesmo quando este sentido se tornou invisível por efeito dos erros que ele próprio cometeu. Ora, a natureza nunca responde totalmente, mas é o ser humano que completa as suas respostas. E na medida em que responde, responde assumindo o sentido e as implicações todas, as implicações reais que aquilo tem. Ou então fantasiando em cima, inventando, fugindo do dever e do sentido da vida.

Quando vemos que tudo isso foi dito só com imagens mudas, notamos que este filme é realmente uma obra-prima assombrosa. No sentido de jogar com um monte de causas para provocar um efeito final, existe uma analogia entre Aurora e A Tempestade de Shakespeare, mas a diferença é que nesta há um agente regendo as causas, que é o mago Próspero, enquanto que aqui, não. Aqui não aparece mago nenhum, você sequer sabe quem está dirigindo a cena ou mesmo se ela está sendo dirigida. O que você sabe é que ela faz um sentido tremendo. Perguntar se isso foi premeditado ou não, neste caso, é inteiramente ocioso, porque a pergunta não é essa. A pergunta não é quem está dirigindo e com que propósito, a pergunta é: O que precisamente está acontecendo? É uma chuva como qualquer outra? Não. É a chuva que acontece neste momento e mata a mulher que o sujeito queria matar meia hora atrás. O momento em que isso acontece não é indiferente. A vida real é justamente essa densidade na qual todos os fatores são absolutamente inseparáveis, e a única coisa que está realmente em jogo é se você vai aceitar essa densidade ou se vai fugir para um outro mundo, plano e sem gravidade, o mundo da fantasia subjetiva. É justamente esse drama que dá ao filme todo seu valor e seu impacto.

A história que o personagem havia inventado ele próprio entendia perfeitamente, mas, e esta outra história que de fato lhe acontece? São tantos os fatores em jogo, que ele não poderia ter uma explicação completa. Para entender tudo o que aconteceu, ele precisaria ser Deus. Imagine o número de causas que teriam de ser investigadas para se saber por que houve toda essa convergência de acontecimentos. Isso nunca ninguém terá. Em nenhum momento haverá uma explicação completa de tudo que aconteceu. No entanto, longe de compreender isso no sentido vulgar das "limitações do conhecimento humano", temos aí uma indicação preciosa sobre a natureza mesma da realidade: a realidade só é real quando, nela, o conjunto finito dos elementos conhecidos, e que em si mesmos podem não fazer sentido, é abarcado por um infinito que, incognoscível em si mesmo, dá a unidade e o sentido do quadro finito. Sempre que o finito se fecha em si mesmo, pretendendo ser auto-explicativo, estamos no reino da fantasia lógica otimista e prometéica. E sempre que o finito se dissolve num infinito sem sentido, estamos no reino da fantasia macabra. É na articulação sensata do finito no infinito que se encontra o conhecimento da realidade.

O sentido da vida do personagem não apenas não é subjetivo: ele é, por assim dizer, um sentido histórico. O personagem é este homem e não outro, ele teve esta vida e não outra, enfim ele não está livre para sentir o que quiser na hora em que quiser. Ele vai sentir de acordo com o que aconteceu antes e de acordo com o que ele pretende que aconteça depois.

Justamente na hora em que o indivíduo voltava para casa, esperando retornar à sua paz doméstica depois de tudo aquilo que viveu, depois da tentação e do remorso, nesse instante incide a chuva e ela tem esse sentido porque se encaixa na seqüência desse antes e desse depois, e não porque o indivíduo "sentiu" isto ou aquilo. Na verdade, ele poderia não sentir, ele poderia ficar idiotizado. Muitas pessoas, diante de um sofrimento desse tipo, na hora em que a vida realiza sua fantasia macabra, enlouquecem e não querem pensar mais. Aí elas perdem a percepção do sentido do que está acontecendo, mas esse sentido continua presente e pode ser reconhecido por quem, de fora, observe o que se passa.

O preço do sentido da vida é entender o que está acontecendo, por mais que doa. Mas entender sempre apenas do ponto de vista humano e sem ter a explicação global. Ora, isso é muito importante para o estudante de filosofia, pelo seguinte: em qualquer investigação do tipo metafísico que se faça, a tendência humana é sempre voar direto para o problema da providência, do determinismo, da intencionalidade divina, tratando desses temas de uma maneira genérica e abstrata, sem ter este arraigamento prévio do sentido da vida pessoal, o qual é, evidentemente, o único intermediário pelo qual se poderia chegar à compreensão da intencionalidade divina. Se você não compreende sequer o que os acontecimentos representam dentro do enredo da sua vida, como é que você vai entender as intenções do Escritor que produziu a obra? Se você não entende nem a história, como é que você vai entender a psicologia do Autor? É ridículo que pessoas de alma tosca, incapazes de apreender e assumir responsavelmente o sentido de suas próprias vidas, se metam a opinar sobre questões filosóficas simplesmente porque leram Kant ou Heidegger. Primum vivere deinde philosophari tem precisamente este sentido: o verdadeiro filósoso é filósofo na vida real e não apenas um estudioso que fala sobre filosofia. Por isso mesmo é que a investigação metafísica nunca pode ser uma mera investigação abstrata no sentido científico e impessoal, ela sempre vai implicar uma responsabilidade pessoal. E a pergunta que se coloca é a seguinte: você aceita compreender o que está se passando na sua vida? E em que medida você vai agüentar? Oitenta por cento dos filósofos a quem você fizesse essa pergunta correriam de medo, porque há certas coisas que são terríveis de entender, sobretudo as conseqüências do que cada um fez na vida.

Construa a hipótese de que exista um Deus, de que Ele conhece seus pensamentos e de que Ele pode, como neste caso, tornar realidade os seus piores pensamentos. Você deseja conhecer esse Deus? A maioria das pessoas, aí, já não vai querer mais. É melhor não saber. Surge aqui a famosa emoção da "máquina do mundo" do Carlos Drummond de Andrade, quando o indivíduo, após ter investigado e perguntado a vida inteira, na hora em que o Universo vai finalmente se abrir e mostrar tudo, ele diz: — "Não quero mais saber".

"como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demostrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera
seguia vagaroso, de mãos pensas."

(Trechos de "A máquina do mundo" - Carlos Drummond de Andrade, em Claro Enigma)

O acesso ao conhecimento de ordem metafísica tem de passar primeiro por um conhecimento de ordem moral e ética que não consiste em "seguir" uma moral ou uma ética já dada e pronta, mas, ao contrário, em de fato desejar compreender a própria vida e realizar o seu sentido, assumindo o dever com todas as forças, porque é na vida real que se vai encontrar o elo entre o natural e o sobrenatural. E onde mais poderia agir o tal sobrenatural, se não fosse no real, neste mundo histórico e humano onde vivemos?

A natureza já está dada, é um fato que está diante nós. Ela já está resolvida, se não de maneira eterna, pelo menos de maneira habitual; embora haja um coeficiente de indeterminismo na natureza, pelo menos no plano macroscópico, no plano da natureza visível, as coisas funcionam segundo uma certa regularidade na qual você não interfere. A interferência do homem nos processos naturais é mínima. Pois bem, onde mais você vai interferir? No sobrenatural? Não, o sobrenatural é Deus, é onipotente, você não pode mexer lá. Então, você não pode mexer, na verdade, nem na natureza e nem no sobrenatural. Você está colocado, por assim dizer, na natureza, mas um pouquinho acima dela, na medida em que pode enxergar a natureza como um todo e perguntar sobre alguma coisa que está para além dela, mas aonde você não pode chegar. Então, onde você está? Exatamente entre um e outro. Entre um conjunto que você enxerga mas não entende e outro que, se conhecer, vai entender, mas não conhece. A natureza é visível e cognoscível, está diante de nós, mas nós não a entendemos, porque não parece ter intencionalidade. Às vezes parece que, outras vezes parece que não, então você não sabe. Como é que vamos saber? Bom, precisamos interrogar o que está além da natureza, aquilo que está acima dela e que a determina. Em suma, precisamos conversar com o Autor da história. Se você conhecesse o Autor da história, tudo estaria explicado; mas você não O conhece. Aquilo que você conhece, você não entende e aquilo que você entende, não conhece. Deus é perfeitamente compreensível; na hora em que você começa a pensar em Deus, você vê que tudo faz um sentido tremendo, mas nós não O vemos, não O escutamos e não O conhecemos. E tudo aquilo que vemos, escutamos e conhecemos nem sempre faz sentido. Você tem o fato em baixo e o sentido em cima. Você desejaria subir para este sentido. Mas onde está o elo? Em você, porque você também existe materialmente, ou seja, você é objeto de conhecimento seu, você conhece o seu próprio corpo, a sua própria vida, exatamente como você conhece a natureza. E qual é o sentido da sua vida? Você tem a realidade da sua vida, mas qual é o sentido dela? Com relação a você mesmo, você também está dividido. Você conhece a realidade da sua existência, mas não o sentido dela. O sentido, é claro, faz sentido, mas você não o conhece. E a vida você conhece, mas não sabe se faz sentido. Então, você é esse elo, porque a cada instante você pode ligar a esfera dos fatos com a esfera do sentido. Como é que você faz isso? Compreendendo o sentido que os fatos impõem, não abstratamente e em si mesmos, mas com relação à sua vida histórica.

Só na medida em que vai aceitando compreender esse sentido que está na sua própria vida, você tem ao mesmo tempo a abertura para aquele laço maior que há entre o natural e o sobrenatural. A relação que existe entre a sua vida e o sentido da sua vida é a mesma que existe entre a natureza e Deus. Sendo você o único elo, há algo que tem de se resolver na sua esfera e na sua escala antes de você poder fazer a sério qualquer indagação de ordem metafísica.

Ora, quando entendemos isso, cada um de nós pode também colocar a seguinte pergunta: Quais os fatos que foram determinantes do meu destino? E, se você começa acontar sua história direitinho, verá que houve fatos que determinaram o seu destino real, sem que você opinasse a respeito, sem que fosse consultado e às vezes sem que sequer os percebesse. Na vida dos outros a gente percebe isso muito bem; na nossa, é preciso um esforço.

Por exemplo, você monta um armazém. Depois de uma crise econômica no Zâmbia, que muda o comércio internacional de um produto, seu armazém afunda. Você não precisa conhecer essa crise econômica toda, você não precisa saber onde ela começou e você não precisa saber o tamanho dela. Você sabe apenas que seu armazém afundou. Agora, eu pergunto a você: você quer ver o tamanho do inimigo que liquidou seu armazém? Quer ver o tamanho do elefante que pisou em cima de você, ou não? Quer conhecer realmente o que determina sua vida? Note que não estamos falando de causas sobrenaturais, estamos falando de causas sócio-econômicas. Nesse momento, a maior parte das pessoas baixa os olhos como o personagem da "Máquina do Mundo". Não quer ver, e não querendo, volta à condição de animalzinho — o bichinho vivente cuja vida não tem sentido, cuja vida não precisa ter sentido, e que só espera morrer o mais rápido possível. A partir desse momento, mesmo o esforço que o sujeito faça para atender aos seus impulsos vitais, seus desejos, estará atendendo apenas a um instinto de morte. Qual é o resultado final da vida biológica? A morte. É o único resultado a que a vida biológica pode levar. Portanto, na hora em que você limita sua vida ao biológico, por encantadora que ela ainda possa parecer, você sabe que está indo apenas na direção da morte e de mais nada. A renúncia ao sentido leva embora consigo a própria vida.

Conhecer o sentido da vida pressupõe conhecer o sentido das coisas que vão acontecendo enquanto ela se passa. Mas a apreensão desse sentido às vezes implica o conhecimento de forças terríveis, forças de escala histórica, social, planetária ou supra-planetária. Suponha, por exemplo, que os planetas exerçam alguma influência sobre a sua vida. Suponha que um planeta se deslocando em sua órbita planetária possa causar um efeito na sua vida. Como é que você vai dialogar com um monstro desse tamanho? A maior parte das pessoas não deseja, por medo, levantar os olhos para ver o que determina a sua vida. Mas a aquisição do sentido da vida pressupõe a aquisição do sentido do cenário cósmico em que você está; não em si mesmo, como se faz ecologicamente, mas como cenário da peça que é a sua vida. Partindo do ponto onde você está, a consciência pode ir se alargando em círculos concêntricos cada vez maiores, para compreender gradativamente o conjunto de fatores que determinam objetivamente a sua existência. E à medida que esta consciência se amplia, mais nítido se torna o dever pessoal que dá sentido à sua vida. E aí você não busca mais proteção na inconsciência covarde (fingida no começo, mas que com o tempo se torna inconsciência mesmo), e sim no dever, que lhe infunde coragem cada vez maior.

Acontece que, quando alguém faz isso, vê que é quase um milagre tomar alguma decisão em meio a todos esse fatores enormemente poderosos. Nessa hora, o indivíduo é obrigado a enxergar a realidade mais brutal da vida humana: a fragilidade do poder individual. A expansão da consciência pressupõe uma retração das pretensões e uma perda do egocentrismo, e neste ponto a maior parte das pessoas volta atrás. Para não perder aquele falso senso inicial de segurança, aquela ilusão de que ele próprio é o centro do mundo, de que ele próprio decide livremente sua vida, o sujeito fecha os olhos ante a máquina do mundo, baixa a cabeça, e daí para diante é igual a um carneiro, ou um porco, ou um ganso; mas um carneiro, um porco ou um ganso que continua com a ilusão de que é uma grande coisa.

Nesse sentido específico, o personagem do filme aceita o mais plenamente possível a condição humana. Ele entende e assume o que se passa. Ele entende que sua vida é determinada por um diálogo, um confronto, com forças infinitamente poderosas, forças que podem inclusive fazer com ele uma piada sinistra. Aliás, o título do filme, Aurora, nascer do sol, tem um motivo bastante óbvio. O personagem do filme é o verdadeirotwice born, o renascido em Deus, o renascido no reino do Espírito.

É óbvio que há fatores que ele pode ignorar, mas que jamais o ignoram. Nós podemos ignorar os fenômenos cósmicos, ou históricos, mas eles nos atingem; nós não sabemos deles, mas eles sabem de nós. Como um judeu na Alemanha nazista: ele podia ignorar o Führer, mas o Führer não o ignorava. Como um cristão na URSS: ele pode ignorar Stálin, mas Stálin o conhece muito bem. Em certo momento, esse cenário assume de fato uma configuração sinistra. E você agüenta enxergá-la? Você quer saber, ou não? Nesta passagem é que se decide se o homem vai ser digno da condição humana ou se ele vai se imputar aquela autocastração espiritual, que é a pior perda por que um sujeito pode passar, e que nenhuma reparação material pode compensar. O homem que desistiu de saber pelo quê são determinadas sua vida, sua biografia, desistiu dessa vida e dessa biografia. Ele já não lhe dá mais valor, jogou-a no lixo. Agora, no máximo, ele está reduzido a uma criança que, ignorando tudo em volta, pede milagres ou amaldiçoa o destino, a socieadde, o próprio Deus; Deste ponto em diante, só um milagre, mesmo. Mas o pedir milagre é uma coisa amaldiçoada pelo próprio Cristo. "Maldita a geração humana que pede prodígios". E como é que o sujeito vai obter prodígios se não quer sequer olhar para a natureza em torno, olhar para o mundo real onde esses prodígios se sucedem a todo instante?

Aqui é preciso citar uma frase do velho Gurdjieff (não gosto dele, mas ele tem uns achados verbais incríveis), que diz que a maior parte das preces consiste em pedir que dois mais dois dêem cinco. O indivíduo não sabe exatamente o que pedir. Ora, se ele não olha nem a realidade em torno, ele não sabe onde está, portanto também não sabe o que quer. Vai pedir uma coisa qualquer, uma bobagem. Ao fazer isso, está recusando o dom do Espírito, está cometendo o pecado primeiro: "Eu não quero ser um ser individual consciente e responsável, eu quero ser um bichinho que não sabe de nada, quero permanecer no estado de inocência animal." Ele quer pecar contra o Espírito e ainda quer que Deus faça um milagre? Todos os pecados são perdoados, menos esse.

É por isso que vejo uma blasfêmia profunda na apologia vulgar da "vida simples", das "pessoas simples". Esse é um aspecto que nunca foi muito bem estudado. A autêntica simplicidade evangélica consiste justamente em pedir pouco, em não precisar de muito, e não em levar a vida de um bichinho que ignora o mundo que o cerca. Este ignorar é recusar o dom do Espírito, e este é o pecado que não é perdoado nem nesta vida nem na outra, o pior dos pecados. Tudo é perdoado menos o pecado contra o Espírito Santo. Qual é este pecado? A ignorância voluntária — e ainda há quem chame isso de "simplicidade evangélica".

A falta de interrogação sobre o sentido da vida, a depreciação desta busca ou sua redução a uma curiosidade acadêmica, como se algo desligado do eixo da vida, isto é o desprezo pelo Espírito. Se o sujeito faz isso e depois vai ler a Bíblia, vai rezar, ele está perdendo tempo. É uma besteira: ele já informou a Deus que não quer nada com Ele.

Essa desespiritualização é a total absorção do indivíduo nas tarefas de subsistência, incluindo as tarefas de prazer, que também são para subsistência. Você precisa de uma certa quota de prazer sexual, gastronômico, etc., simplesmente para sobreviver, assim como, para sobreviver, precisa de uma certa dose de esforço dolorido. Enquanto o indivíduo está limitado a essas duas coisas, ele optou pela vida natural, não quer saber do sobrenatural. Se ele quiser saber do sobrenatural, terá de passar por essa interface, que é o sentido da vida dele mesmo.

Para você saber o sentido de uma coisa, primeiro precisa saber que coisa é esta. "Que é que eu sou?", "Onde é que eu estou?", "Que é que eu estou fazendo aqui?", "Que é que está me acontecendo?" e "Em que rumo está indo o curso da minha vida?" Por exemplo: Você deseja realmente saber todos os impulsos hereditários malignos que herdou de seus antepassados? Assassinos, estupradores, traficantes, contrabandistas, proxenetas, dedos-duros — quer? Quer ver tudo isto? A isto Dante chama descida aos infernos: reconhecer as possibilidades inferiores que ainda estão em você. Você querver isto? Não, não quero. diz a maioria. Então, se não quer, não adianta ir rezar, porque a função do Espírito Santo é revelar precisamente isso para você. Pelo olhar firme e inteligente é que você supera todo o mal que há em você: se você é capaz de saber, de olhar, você já está acima do seu próprio mal interior; agora, se você não quer ver, você ainda está em baixo. Não temos medo daquilo que nos é inferior. Só quando você quer ver esse conjunto é que, pelo simples fato de ser vistas, essas possibilidades então são queimadas, passam a fazer parte do seu mundo cognitivo e você de certo modo já está colocado acima delas.

Então, se formos pensar a ferro e fogo, a idéia que se tem hoje da preocupação "realista" com o cotidiano repetível é uma fuga do Espírito, uma sucessão de analgésicos. Quando acontece uma grande desgraça, o indivíduo se pergunta "por que isso aconteceu a mim?". Boa pergunta, mas antes de perguntar pela desgraça, já devia ter perguntado uma série de outras coisas. Não, ele deixa para fazer perguntas só quando acontece a desgraça. Ora, a desgraça pode ser complicada, e ele talvez não a entenda. A situação do personagem do filme é uma situação evidentemente ideal, portanto artisticamente simplificada. É o indivíduo que nunca tinha pensado em nada e repentinamente tem de entender tudo. E ele entende. Ora, ele entende porque é um filme, é um esquema simplificado, simbólico, da vida. Na verdade, se o indivíduo passar a vida toda ignorando solenemente tudo o que se passa, quando ocorrer a desgraça ele também não vai entender, vai ficar ainda mais burro do que estava antes.

Não acredito que deixar tudo para o último minuto possa adiantar, exceto no filme. No filme, há um idiota jogado de repente numa situação trágica, onde ele tem de entender tudo e realmente entende, e, na hora em que entende, sua compreensão tem uma função catártica. Na hora em que toma consciência do que aconteceu, ele descarrega o mal que havia na situação e esse mal instantaneamente se converte em bem e sua esposa é resgatada.

Eu não nego que possa haver, neste sentido, uma atuação mágica do ser humano sobre o cenário histórico e até mesmo o cósmico, na medida em que entende o mal e, entendendo, o expressa e sublima de alguma maneira, exatamente como dizia Thomas Mann, que algumas previsões a gente faz justamente para que não aconteçam.

Mas, e se ninguém quer ver o mal? Aí vai acontecer mesmo. Se você não quer ver, você deixa tudo atuando na esfera da mecanicidade, das causas que já estão atuando independentemente de você e que vão chegar fatalmente às suas finalidades. Se você percebe e absorve este impacto, é possível que a sua tomada de consciência tenha uma função catártica capaz de beneficiar muitos seres humanos em torno.

É por isso que em geral profetas e grandes místicos são pessoas que tendem a ser mais tristes do que alegres, porque sabem o que está se passando. Podem antever certos resultados que os outros não antevêem e já sabem o que vai dar errado. Maomé olhava para um sujeito e sabia que o sujeito já estava no inferno, sabia que não podia fazer nada por ele, então chorava. Mas esta é uma última instância. Não é preciso antever o sujeito no inferno, mas um sujeito na câmara de gás ou num pelotão de fuzilamento é impossível que não haja ninguém capaz de antever. Entretanto, nas situações em que esse mal se aproxima, muitos esperam para tomar consciência no último momento.

Toda tragédia tem esse elemento: ver ou não querer ver. Na tragédia antiga, esse não ver não envolve culpa. A tragédia antiga parte do princípio de que existe uma certa limitação da inteligência humana. É um caso extremo, onde, mesmo agindo no melhor de suas capacidades, o homem não conseguiria entender, então ele se torna uma vítima inocente do jogo cósmico.

Na esfera cristã, já não se admite isso e sempre há um sentido culposo, e por isso mesmo o gênero trágico não floresce muito aqui. No mundo cristão, o que não quis ver tem culpa. Sempre há uma margem de manobra: as coisas poderiam ser de outra maneira. Pode haver um desenlace horrível, mas não trágico, porque não fatal. Foi uma escolha errada. De maneira aparentemente paradoxal, a culpa restaura a liberdade, porque ao assumir a culpa o sujeito vence, de certo modo, o destino fatal. As pessoas que hoje falam levianamente contra o senso cristão da culpa não entendem ou fingem não entender que a única alternativa a isso é o retorno à fatalidade trágica grega onde o inocente é sempre condenado. Os inimigos do sentimento de culpa são inimigos da liberdade.

Mas há maneiras distintas de entender, por exemplo, a história de Adão. Adão erra por fatalidade, ou tinha margem de manobra? Ele podia enxergar o que estava acontecendo ou foi uma pobre vítima dos acontecimentos? A interpretação muçulmana diz que foi um simples lapso intelectual, por isso não aceitam o pecado original: ali onde Adão errou qualquer um erraria. Mas é preciso compreender que a perspectiva islâmica, nesse caso, está referida à espécie humana e não ao indivíduo. No plano das ações individuais existe culpa, sim. O que o islamismo professa no fundo é apenas que o pecado de Adão foi de ordem cognitiva, e não propriamente moral.

Epílogo em junho de 1997

A gravação desta aula termina assim, abruptamente. Mas lembro que encerrei dizendo que Aurora, obra de um cineasta que foi um profundo estudioso da filosofia, da religião, do simbolismo e do esoterismo, era um cume de realização artística que o cinema nunca havia ultrapassado, precisamente porque nele as imagens condensavam diretamente e sem qualquer linguagem enigmática os problemas mais altos da metafísica do destino e da providência, com uma sutileza digna de Sto. Agostinho e Leibniz. Continuo dizendo isto e Friedrich Wilhelm Murnau continua sendo para mim o maior diretor de cinema de todos os tempos, até prova em contrário.

FICHA

Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Carl Mayer
Baseado no romance Die Reise Nach Tilsit ("Viagem a Tilsit") de Hermann Sudermann
Cinematografia: Charles Rosher and Karl Struss
Música: Hugo Riesenfeld
Montagem: Harold D. Schuster
Produção: William Fox

Papéis principais:

George O'Brien - O marido
Janet Gaynor - A esposa
Margaret Livingston - A mulher da cidade

CARVALHO, Olavo. Aurora, de F. W.Murnau:cinema e metafísica.(Aula do Seminário de Filosofia (30 jan. 1997). Gravação transcrita por Marcelo Tomasco Albuquerque e editada por Alessandra Bonrruquer). Como disponível em 18 de junho de 2011 em <http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/aurora.htm>

Para baixar o filme clique aqui.

(Cortesia de O sétimo projetor: http://setimoprojetor.blogspot.com/2011/04/sunrise-murnau.html)