O ateísmo cientificista que se dissipa como vírus pelas redes sociais é a mais recente moda revolucionária: ateus, uni-vos, parece bradar Dawkins, Hitchens e Dennet. A ideia mesma do ateísmo tem raiz diabólica - independente de ler-se esse adjetivo como referência à metáfora ou ao fato - remonta mesmo a narrativa bíblica sobre a criação da humanidade em que o homem é tentado pela serpente à provar da àrvore cujo fruto traria o conhecimento do bem e do mal:
E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela. Gênesis 3:2-6
Seria Nietzsche, o filósofo alemão, que, no século XIX, comentando a passagem acima colocada, diria que Deus, ao criar o homem "havia criado para si um rival. A ciência torna-o igual a Deus - tudo está acabado para sacerdotes e deuses quando o homem se torna homem de ciência". Segundo Nietzsche, a "moral" da história do Éden seria a de que "a ciência é a coisa proibida em si". Ao longo de seu discurso - aqui faço referência à obra "O anticristo", cuja primeira edição data de 1888 - ele insinua-se em alguns momentos com o darwinismo, então incipiente, e encerra com uma condenação feérica contra o cristianismo fundada em sete artigos que concluem o livro.
O século XIX é também o berço do socialismo, que dá seu primeiro grito de guerra com Marx e Engels em seu "Manifesto do partido comunista". No opúsculo marxista o também alemão - "está provado que só é possível filosofar em alemão", diria Caetano - propõe que a história pode ser compreendida como o desenvolvimento da luta de classes ao longo do tempo e evoca a luta do proletariado contra a burguesia opressora: "proletariado, uni-vos!", é o grito de guerra que conclui seu texto.
Freud, por sua vez, busca explicar como a fé em Deus origina-se, sob o ponto de vista psíquico. Quando nos encontramos no âmbito da questão, em Freud, três textos são basilares: Totem e Tabu, O futuro de uma ilusão e Moisés e o monoteísmo. No primeiro, o ... alemão (!) sugere que o culto ao totem - animal adorado como entidade sagrada em comunidades tribais - teria surgido com base no trauma ancestral advindo do assassinato do pai: o animal sagrado representaria, deste modo, o pai assassinado. A imagem de pai, que percebemos no Pai Nosso, na ideia de um Deus "Pai" todo poderoso, seria reflexo do pai, que, bem sabemos, é mortal, nada mais que um humano como nós: morto o pai - simbolicamente - outro símbolo seria alçado à categoria de pai, mas, desta vez, numa dimensão maior, um super-pai, por assim dizer, um... "Deus, Pai todo poderoso". Em Moisés e o Monoteísmo Freud - um judeu que se tornou ateu - se volta à história de Moisés para tratar de seu caso específico, e o faz com conhecimento de causa, já que, judeu, conhecia muito bem as Escrituras.
Nietzsche por certo foi lido por Freud, que, como aquele, previa a falência da religião, acompanhando mesmo a ideia de Deus. Em seu "Futuro de uma ilusão" ele propõe que dentro de um certo prazo Deus poderia desaparecer do pensamento humano como um devaneio apagado pela sóbria racionalidade.
Darwin, Nietzsche, Marx e Freud dão-se as mãos ao longo do século XX, que assiste ao nascimento do existencialismo de Sartre, que proclama a máxima paradoxal da condenação à liberdade: não existe mais espaço para a metafísica, só nos resta agir dentro do campo do possível enquanto existimos: o homem existe, somente. Assassinado por um lento corte da navalha de Ockham, Deus morre na filosofia junto a toda metafísica e, diria Freud, nos deixa órfãos: a partir de então é enfrentar o complexo da orfandade ou inventar uma verdade melhor: uma religião fashion, um novo drops alucinógeno, ou uma nova utopia, um motivo pra ficar raivoso contra o mundo e tentar plantar o paraíso aqui e agora.
Mas nesse afã nasce a guerra: ela nasce no momento em que eu percebo que o outro é o outro, e que o meu ideal de "mundo melhor" entra em choque com o ideal de "mundo melhor" do outro. E é partindo do pressuposto de que o "mundo melhor" é de fato possível, já palpável como que numa realidade concreta - ainda que não passe de uma imagem que projetamos para um futuro hipotético - que justificamos o ódio a quem discorda: o discordar vira sinônimo de desrespeitar, de ser o inimigo, o culpado por todas as mazelas do mundo, e, na certeza de fazer o bem para o mundo, praticamos o mal (...) tudo isso no mar absurdo do relativismo ético, que abraça essa dança fazendo mesmo do bem e do mal conceitos pares.
Ou entendemos que o Éden terreno não passa de uma utopia infantil ou então brincamos de rei, e, como se fôssemos Deus, assumimos a tirania que alguns projetam em Deus, passando a cometer as piores barbáries em nome de um futuro hipotético no qual o mundo, enfim, será mais "justo", um mundo "melhor", adjetivos que assumem significados diferentes de acordo com cada moda revolucionária.
O homem contemporâneo: um Fausto revoltado.
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