quinta-feira, 17 de março de 2011

Nós, domadores de serpentes:

 

 

Você não pode dizer que não deveria haver serpentes venenosas, porque essa é a lei da vida. Mas na esfera da ação, ao ver uma serpente picar alguém, você a mata. Isto não é dizer “não” à serpente, mas dizer “não” à situação.

 

Joseph Campbell

Um grupo de pré-adolescentes vindos de uma escola desconhecida inserem-se numa região litorânea qualquer refugiando-se do mundo que, lá fora, jaz em guerra. Em meio ao grupo emerge um. É um, indivíduo que se revela em meio ao número de garotos que não contei. “Tomamos esta ilha, devemos tomar conta uns dos outros. Mas é uma boa ilha, há várias frutas, água, e creio que não haja animais selvagens. Então não é lá tão mal. Nenhum de nós se machucou. Não há nenhum perigo, e podemos construir abrigos e nos acomodar. Se não perdermos a razão tudo ficará bem” – notou a voz que se levantou em meio a infante assembleia. Mas como dormiremos? – perguntou um deles. Construiremos abrigos, logo respondeu outro. E que cada um tenha a sua vez de falar. Devemos impor esta regra, como na escola, e devemos obedecê-la. Afinal de contas, somos ingleses, e os ingleses são melhores em tudo. A plateia ovacionou o discurso orgulhosa. O porco tentou chamar a atenção dos presentes para o fato de que, perdidos no meio do nada, muito provavelmente ninguém os encontraria. Um outro cochicha ao seu ouvido palavras de receio: o que fariam as criancinhas com a serpente que se escondia na escuridão da selva? Não há nenhuma serpente entre nós, preferem crer.

É cada vez mais recorrente um termo que designa o assédio moral sofrido todos os dias por crianças e adolescentes: o bullying. Aquele que inventa apelidos caçoadores, que aponta o dedo, que toma de uma determinada característica de um terceiro evidenciando-a de tal forma a conceber um cunho caricaturesco a ele. Assim, o que usa óculos vira quatro-olhos, o que excede no peso, a bola, quiçá baleia, e o negro, macaco.

Mas que falta de bom-senso – clamam a Tv e os jornais. Parece consenso, de modo que é aconselhável concordar, diz responder a massa amorfa. Não sabemos, entretanto, se tal voz é aquela que ecoa do “povo” – essa entidade anônima – ou nada mais que um cunho forjado pela estatística, que a televisão e os jornais temam em lhe conceder, forjando assim um nome e uma opinião aos sem nome e voz.

Não obstante o bullying seja vocábulo empregado quando o assunto é violência moral infanto-juvenil, poderíamos bem encontrar tais casos de assédio moral entre nós, adultos. Você já comentou ao ouvido do amigo sobre a velha gorda que passa na calçada ao lado? E quanto àquele que, por língua presa, fala “estranho”? Ainda que a ocorrência seja muito apontada quando se trata da relação entre crianças, é necessário lembrar que o comportamento infantil apresenta-se, menos explícito não obstante tão cruel quanto, nos adultos.

Ocorre que, no caso dos civilizados adultos de óculos e gravata, que leem jornais e passeiam com seus cachorros pelas ruas, o assédio moral esconde-se por trás dos sorrisos de bom dia e das camaradagens cordiais com as quais demonstramos nossa amizade para com o desconhecido. Ainda que o ácido venenoso de nossa víbora de estimação impressione por seu adestramento, é preciso lembrar que lá ela está, escondida, porém não exterminada por completo. Tudo bem, talvez aqueles que condenam o bullying sem analisa-lo mais profundamente se sentirão chocados ao lerem tamanha falta de consideração pela bondade humana.

Na verdade, uma coisa não exclui a outra. Somos, simplesmente, animais. Somos lobo e leopardo, coruja e águia, serpente e, dizem, macaco. Símios vestidos a esconderem por sob os panos o carnaval. Como animais – enquanto carne – somos capazes disto ou daquilo: de roubar ou presentear, acariciar ou espalmar, assassinar ou dar a luz. Se é preciso apelar aos impulsos de vida que movem nossa civilização, é preciso, na mesma medida, valorizá-los por oposição ao duplo “vergonhoso” à nossa civilidade: os impulsos de ódio, à capacidade de nos voltarmos contra nossos semelhantes.

Não foi por acaso que elegi a palavra semelhante à conclusão do último parágrafo. Se é a raça, a religião, a nacionalidade ou a conta bancária que nos distingue enquanto seres civilizados, somos iguais por nossa natureza animal. Grosso modo, como diz meu padrasto: tomos cagamos e peidamos, todos sentimos fome e sede, e todos nós, ricos ou pobres, doutos ou analfabetos, seremos, por fim, reduzidos ao pó e à lembranças que se apagarão no tempo.

No primeiro parágrafo deste texto, descrevi em linhas gerais o mote do filme The Lord of the Flies (O senhor das moscas, traduzido, mas não sei ao certo qual nome o filme recebeu no Brasil), de 1963, dirigido por Peter Brook. Em sua película, a história do grupo de estudantes que se revoltam contra a escola e se refugiam numa selva desconhecida é colorida com traços presentes em narrativas mito-poéticas sobre a criação do universo e o surgimento do homem, como os primeiros capítulos de Gênesis e o Mahabarata. Em ambos os casos, assistimos a cenas de fratricídio e intolerância. Uns culpam a religião, outros, os políticos, e ainda outros, o vizinho, o padre, o pastor, ou o amiguinho que se senta ao lado: o inferno, em suma, são os outros.

Mas a fera que se esconde no mar ou em baixo da terra não é outra senão duplo daquela que afirma sua presença em cada célula que se move em nosso corpo. Lembrei-me de uma cena do filme, quando uma frágil voz denuncia tal condição inescapável: talvez não seja a fera, talvez a fera seja nós mesmos. Mais doce é acalantar a serpente, escondendo-a em meio a uma ignorância fingida: não existe nenhum mal entre nós. Perigoso, no entanto, é saciar-se com tamanha volúpia em meio à tal fantasia, e se esquecer do velho ditado bíblico que alerta: o homem é o lobo do homem.

Conhece-te a ti mesmo. Faça as pazes com tua serpente de estimação. Encare-a nos olhos. Saiba-se ela, cative-a, mas cuidado: não se esqueça que ela sempre será você.

Por último o mais importante: duvide de tudo o que acabei de escrever.

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