Busco responder a seguinte questão utilizando de um perpicaz jogo de palavras, tentando forjar o aborto em termos bem amenos, e, às vezes, desviando de assunto.Depois eu volto à primeira resposta tentando redizê-la de maneira mais explícita, por assim dizer.No fim, concederei minha posição pessoal a respeito do tema.
Mas afinal de contas: o aborto deve ser descriminalizado ?
Resposta 1 (jogo de palavras): Na verdade seria um absurdo atravacar o desenvolvimento cultural de nosso país encerrando-o em uma condição de atraso em relação à outras nações que já compreenderam que cabe somente à mãe, e tão somente à ela, decidir-se sobre questões que dizem respeito a seu próprio corpo – leia-se, a ela mesma – exercendo assim sua total liberdade de escolha e celebrando sua emancipação no jogo político contemporâneo.O aborto deve sim ser descriminalizado e tratado como assunto de saúde pública.Ou será que continuaremos vítmas de um Estado que se faz de laico, mas que ainda corre para os braços da igreja quando esta lhe convém ? Consideremos, a título de reflexão, que relações extraconjugais são cada vez mais comuns.Tais relacionamentos podem acabar, por descuido de seus partícipes gerando frutos indesejados, que acabarão, na maioria das vezes por conta dos mesmos moralismos ultrapassados, tornando-se uma espécie de expiação pelo “pecado” cometido, como se uma condenação perpétua pelo “prazer proibido” fossem.
Ou seja:
Quando me refiro ao “desenvolvimento cultural de nosso país”, digo da riqueza simbólica deste, do conjunto de saberes e fazeres que caracterizam um determinado povo em uma determinada época e lugar, e que se manifestam tanto em seu nível individual quanto no social – que se refletem mutuamente – em constante construção.
É importante frisar que, em último caso, não é possível dissociar a riqueza simbólica de um povo de sua riqueza material, que aponta, por sua vez, para sua condição econômica.O desenvolvimento econômico de um país reflete-se de maneira direta nas relações entre as pessoas que lhe povoam.É fato que países cujo desenvolvimento econômico, tanto do ponto de vista da riqueza acumulada quanto de sua distribuição, já encaram a questão do aborto como um assunto que diz respeito à saúde pública, o que demonstra o interesse do Estado com relação à condição de vida das pessoas, condição esta que, por sua vez, reflete sua situação econômica.Ao tomar para si a responsabilidade por esse assunto, o Estado revela a preocupação que tem pela saúde e bem estar psíquico e físico das mulheres.Descriminalizado ou não o aborto continuará a ser uma prática mais comum do que parece, e disponibilizar a devida assistência nos órgãos de saúde estatais evitará que mães prematuras não assistidas socialmente continuem a morrer devido a tentativas de aborto feitas aos trancos e barrancos sem nenhum cuidado médico profissional – já que o preço de um aborto em uma clínica clandestina impossibilita o acesso das classes baixas a esses serviços.
Quando afirmo que “cabe somente à mãe, e tão somente à ela, decidir-se sobre questões que dizem respeito a seu próprio corpo – leia-se, a ela mesma”, quero dizer que a velha ideia dualista que compreendia o ser como uma entidade dotada de corpo e alma já caducou a tempo, e, como qualquer opinião contrária poderia ser refutada pelos cientistas mais badalados da atualidade, podemos compreender o ser humano como um complexo sistema constituído de carne, veias, e sistema nervoso.Todos os fenômenos ditos de iluminação religiosa podem ser, consequentemente, compreendidos sobre o ponto de vista material, atitude que aqui empreendo.
Quero dizer, também, que não me preocupa, na verdade, se pode ou não ser o feto considerado um ser vivo.Basta-me a opinião da ciência, e, sendo esta não consensual, advogo a favor da que mais me favorecer.Considero também que mesmo as verdades científicas estão sujeitas ao complexo jogo de engrenagens que movem a história, e quando destas falo, volto novamente à economia, já que qualquer tipo de pesquisa científica precisa de ser financiada, de modo que o desenvolvimento econômico também reflete-se no científico.Desconsidero, portanto, o corpo do feto, preocupando-me, por ora, com o corpo feminino que o ostenta, já que, para meus interesses, isto me basta.Claro que não posso deixar de aproveitar o espaço que foi aberto pelas revoltas feministas de ontem para tratar do assassinato do feto como um ato de coragem em função da liberdade da mulher.Tudo bem que até ai não há nenhuma novidade, já que qualquer tipo de conhecimento científico ou ideia política tem sua genese histórica – e conhecê-la não implica, necessariamente, em resolver o problema central que aqui se apresenta, a saber, se o aborto deve ou não ser descriminalizado - mas demonstrar que conheço o processo de construção histórica da questão da liberdade me serve como estratégia de desvio da atenção do leitor do principal objeto em questão.
Do mesmo modo, fazendo uso do desenvolvimento histórico do pensamento ocidental quanto à figura divina, aproveito para atacar a igreja.Não o fiz, mas poderia ter feito menção à santa inquisição, penalizando toda a instituição religiosa pelas máculas que alguns de seus representantes lhe causaram.E não é somente a isso que se resume a igreja, a saber: ao papa e a alguns padres pedófilos?É certo que estes podem não agir de acordo com valores cristãos, aliás, Cristo pode não ter nada a ver com isso, mas como posso tirar proveito dos vícios alheios pra denegrir a imagem do barbudo crucificado, não vou perder essa oportunidade.Me importa também desviar a atenção dessas questões, e novamente recorrer ao perspicaz jogo de palavras para, parafraseando uma passagem bíblica, desafiar aquele que nunca pecou à atirar a primeira pedra contra uma mãe que abortasse seu filho – a final de contas, as palavrinhas da bíblia também podem ser manipuladas a meu bel prazer.
Ah, qual é a minha opinião pessoal sobre o tema ?
Tá, ela não vai fazer muita diferença, mas vou afirmá-la abaixo.Fiquem tranquilos, tentarei ser o mais objetivo possível:
É importante notar, de antemão, que o aborto já é legal em caso de estupro, risco de vida para a mãe e ou no caso de o feto apresentar acefalia, por exemplo.Esses casos são particulares e tem de ser tratados em sua particularidade.Hoje em dia, quando se trata de uma gravidez consequente de um estupro ou que traga risco de vida para a mãe o aborto já é permitido por lei e fica à mãe a decisão por abortar ou não.Bem, na verdade, a decisão cabe a mãe em qualquer caso.Descriminalizado ou não, abortos acontecem e continuarão a acontecer, seja em clínincas de luxo ou em clínicas de fundo de quintal.
Existem hoje diversos métodos contraceptivos: camisinha, pílulas anticoncepcionais, pílula do dia seguinte, e a tabelinha, por exemplo.É certo que estes meios podem excluir quase que totalmente a possibilidade de uma gravidez indesejável.Não obstante, vivemos para além de uma condição absurda e insolúvel: todos os valores ditos “humanistas” já não passam de uma triste piada.Na verdade, me pergunto se todos eles não constituem, mais que uma utopia sedutora.
Vivemos num absurdo apocalíptico.Caminhamos cegos pelo deserto de uma humanidade perdida numa condição pós-traumática que parece irremediável, e que de tão cruel chega a ser tragicômica: trágica porque fatal, cômica, porque já não conseguimos mais nem enxergar tal situação, já que viciados numa anestesia já insípida estamos.Vida, humanidade, liberdade: palavras que, se já tiveram ou ainda têm algum valor, este é antes monetário que moral.
A igreja, por sua vez, mantém-se firme em sua posição contrária ao uso da camisinha, e isso mesmo com a AIDS. A igreja continuará firme em sua posição, mas é preciso notar a declaração do papa Bento XVI, que recentemente afirmou ser o uso de preservativos um pecado menor no caso de uma relação sexual de risco. Encarar a Igreja como uma congregação de pedófilos de batina é ignorar sua importância no mundo atual e o papel social que desempenha, mas é óbvio que os casos de pedofilia na igreja divulgados nos últimos tempos vêm manchar a imagem desta instituição que desde a muito tempo vem sendo atacada de maneira cada vez mais brutal.
É fato também que, descriminalizado ou não, o aborto continuará a ser uma prática mais corriqueira do que se pensa, e muito provavelmente, cada vez mais comum em meio ao deserto apocalíptico no qual agonizamos. É fato também que, sujeita à economia, os velhos princípios morais são e serão cada vez mais relativizados e ridicularizados em função da lei do mais forte, no caso, de quem tem maior poder político-econômico.
Diante de tal condição não me surpreende que o aborto seja tratado como um problema de saúde pública. Não poderia ser de outro modo, já que tratar dessa questão sob o ponto de vista da moral, ou ficar se lamentando pelos problemas da educação que lhe são pertinentes seria no mínimo monótono. Discussões sobre esses aspectos do problema tomariam muito tempo, e, como vocês sabem, tempo é dinheiro. Creio que em face de tal situação a descriminalização do aborto não tarde a acontecer. Mais dia menos dia ele será descriminalizado, e quanto a isso pouco importa se será o candidato A ou B que ganhará a eleição, porque o sistema democrático pode muito bem ser assaltado desde dentro, por meio de pesquisas forjadas, manipulação de eleições e abuso de poderes.
Mudam de assunto, desviam furtivamente a atenção, utilizam-se de eufemismos.O que fazer? Essas palavrinhas – moral, ética, humanidade, solidariedade, Deus, etc – continuarão a aparecer, aqui e acolá, nos discursos mais diversos, com significados também distintos, e como tempo é dinheiro, ninguém terá a paciência de analisá-los com maior profundidade.
Jeferson Torres
Falando abertamente, não acredito que as mulheres irão sair por aí abortando indiscriminadamente. Essa problemática é mais ampla do que se supõe. Abortar dói, no corpo e no emocional feminino. E resvala também em seus princípios morais e familiares. A questão é perceber que incriminar se trata de uma segunda punição para alguém que já vive um conflito. Onde foi parar a almejada emancipação se a mulher não puder decidir sobre sua vida? Se esse mecanismo existe e é praticado em condições pouco ideais, se é que se pode assim dizer, não há como persistir em ignorá-lo. Melhor é trabalhar caminhos a partir do fato. Não focar apenas o aspecto espiritual, mas desmistificar a realidade e talvez produzir chances reais de conscientização e prevenção.
ResponderExcluirSeu comentário toca em um frágil aspecto de meu discurso: sou homem.O simples fato de sê-lo, de certo modo, torna qualquer opinião pessoal sobre o tema uma espécie de visão estrangeira.Só me resta assumir esta condição e as limitações que ela me impõe.
ResponderExcluirQuanto a "emancipação feminina", peço para que se volte novamente ao texto, já que este ponto é tratado no seu decorrer.O argumento peca por tomar do corpo da mulher por si só, excluindo, ou, no mínimo, enfraquecendo, a importância do feto.
Quanto à "liberdade de decisão sobre sua própria vida", cabe ressaltar - além da já referida desconsideração da vida do feto - que o livre arbítrio da mulher se mantém mesmo sendo o aborto considerado crime.Fosse o contrário, nenhum crime seria cometido pelo simples fato de sê-lo.
A liberdade se mantém, a mesma liberdade que confere a mulher o direito de se relacionar ou não com tal ou qual parceiro, de exigir ou não do mesmo o uso do preservativo, ou, recusando-se este, de, ela mesma, usar ou não o preservativo feminino.A mulher também exerce sua liberdade ao escolher ou não recorrer à pilulas anti-concepcionais, ou mesmo, em último caso, à pílula do dia seguinte.
Estupros, gravidez que coloquem em risco a vida da mãe e acefalia fetal são casos particulares que devem ser tratados como tais.
De fato esse problema é mais amplo do que se supõe.Ele diz respeito não só à saúde pública, mas, antes, à educação, e, portanto, compreende questões éticas.Coisas como respeito mútuo, planejamento familiar, e outros pontos correlatos que, numa sociedade que sacrificou Deus substituindo-o pela ciência - que, por sua vez, faz-se de empregada direta ou indireta de interesses meramente econômicos - esfacelam-se cada vez.
Não obstante é mais fácil tratar o problema do aborto como uma questão de saúde pública.Descriminaliza-se, dá-se assistência médica nos postos de saúde públicos, e,em caráter imediato, finge-se ter solucionado o problema, mas a raíz deste continua a apodrecer diante da nossa cegueira.
Tá. Perceba que meu ponto de vista não prioriza a vida da mulher em detrimento da vida de outro ser. Nem seria justo, já que você mesmo menciona, liberdade pressupõe atitudes responsáveis. Também não apreendo que, a parcela feminina que compõe a sociedade exerça, por fatores inúmeros, inclusive culturais, os direitos até aqui conquistados. Temos direitos, mas exercê-los é outra historia. Sei que a defesa de qualquer direito soa meio feminista ou lembra aqueles pseudo-discursos em defesa das minorias. Mas apenas se encararmos o assunto como uma questão de saúde e consciência restrito a mulher... No fundo quereríamos tão somente ter escolha, ainda que esta não mude, com a descriminalização.
ResponderExcluir"No fundo quereríamos tão somente ter escolha, ainda que esta não mude, com a descriminalização".
ResponderExcluirPermita-me tomar da oração que conclui sua exposição para tecer um breve comentário a respeito.
Ela exprime o antagonismo daquilo que julgamos ser a liberdade.O senso comum tem na liberdade,em suma, a capacidade do livre agir.Minha opinião é a de que somos, de fato, livres, mas o somos pela prisão da condição mesma de nossa liberdade.Impossível é não agir, já que a não-ação não deixa de ser uma ação em si.Agora, ajo, e opto por responder à sua provocação, que, por sua vez, "pro-voca", estimula, fomenta meu pensar-agir no aqui e agora em construção.
Sou completamente responsável por esse posicionamento.Não posso culpá-la por minha atitude.Sou livre,e à mesma liberdade condenado.Porque toda ação ecoa, e só me resta assumir a pena desse ecoar, cuja razão primeira se encontra em meu agir.
A liberdade outra, aquela simplista que salta dos discursos mais populares é uma espécie de ode à libertinagem escondido pelos mais complexos jogos de palavras, e o é na medida em que tangencia as consequências da condição mesma do livre arbítrio em seu complexo antagonismo.
Aliás, desde que alguém disse que não existem verdades eternas, mas que a verdade é, em última instância, nada mais do que uma construção da linguagem, imergimo-nos, no labirinto da Babilônia contemporânea: armadilha que nos detém sem que o percebamos.
Assim,é em nome da liberdade se escraviza e em nome da vida que se mata.
A vida, por sua vez, pode reduzir-se a uma cadeia de DNA.Quem dá a último voto é a ciência, mas esta é bem menos consensual a respeito do tema do que parece, e é preciso lembrar que mesmo as verdades científicas sujeitam-se à lógica segundo a qual a verdade, em última instância, não passa de uma construção da linguagem.
Mas essa discussão faz-se inútil diante de um fato que me parece cada vez mais imponente: a descriminalização do aborto é uma questão de tempo.A total relativização de todas as verdades e valores éticos acompanha a inversão do principal fio condutor da sociedade, da ética para a economia.Pare e pense: quantos nesse mundo tem tempo pra pensar nessas coisas ? Encerro com uma frase que ouvi de uma senhora outro dia no metrô:
"Ah, pra mim tanto faz quem vai ganhar a eleição viu.Eu vou ter que trabalhar de qualquer jeito mesmo ..."
E, como posfácio,uma frase do filósofo francês Henri Bergson:
"Como transformar tudo
isso em comédia? Para isso seria preciso imaginar a liberdade aparente como um
brinquedo a cordões e que sejamos neste mundo, como o diz o poeta,
...pobres marionetes
cujos cordões estão nas mãos da Necessidade".