Sábado é meu aniversário, então, acho que vale a pena tentar tirar algum proveito disso. Como se coubesse em palavras, decidi escrever:
No próximo sábado, o número que designa os anos de minha vida, aquele que pronuncio quando perguntam por minha idade, celebrará o tempo como fato inescapável. Perdido em nomes e sobrenomes de minha extensa bibliografia, pergunto-me agora onde deixei aquele menino tímido de óculos que ouvia de seu pai as histórias de uma vida outra, como se grandes contos heroicos de um destemido cavaleiro fossem. Do silêncio de meu quarto, sozinho, dedico-me à encontrar as palavras mais exatas para descrever meus pensamentos, para materializar no papel o que foge à qualquer representação última, a saber, a vida, o que fui, o que vi, o que não sei que sei, e o que, em suma, sou, antes de sumir por ai. Silenciei em algum canto aquela criança capaz de se apaixonar e, adulto, casei-me com a solidão. Tenho saudades de mim, às vezes, e às vezes, só, reafirmo minha solidão como escudo inquebrantável.
A vida é cheia de pequenas mortes, e eu já estive em pelo menos três velórios, sendo deles o de meu pai, certamente, o mais marcante até aqui. Aquele colo seguro, era então um cadáver sem vida envolto num caixão de madeira que, dias antes, tive a oportunidade de ver na loja, quando com minha mãe fui conferir o preço do produto, do última armadura que cobriria meu cavaleiro destemido. Guardo também com frescor a imagem das coroas de flores que recebeu, já dentro do túmulo, sob o aceno que com minha mãe a ele votei.
O hábito da leitura é refúgio. Ler é, pra mim, como travar um diálogo com os mortos. São eles essas vozes que ecoam desde o passado para lembrar-nos que aquilo que construímos, ainda que também sujeito ao tempo, vence a morte. Bem notou Santo Agostinho de Hipona, já bem antes de Sigmund Freud: existe o passado no presente, o presente, e o futuro que no presente se manifesta como anseio pelo porvir, dúvida e sonho. É tragicômica a condição humana, revolta contra Deus, para quem caminha, e ao mesmo tempo resposta para os por quês da vida, e pergunta pertinente e persistente que anima os nervos de nós, mortais, e mesmo daqueles que O tem como objeto de recusa, como quem deseja o parricídio do Pai legislador em nome de uma ideal liberdade que se revela, na verdade, como ditadura do desejo e da ira, libido dominandi, o império brutal do homem, o lobo do homem, sobre o próprio homem, seu fiel escravo. Em face da história, à qual estamos sujeitos e da qual nos queremos senhores incontestes, colhemos os destroços da Babel pós-moderna, perdida em mil línguas sem sentido, simulacros de simulacros, de simulacros, de simulacros...
E o tempo urge, esse devir, que quereríamos aprisionar. O meu presente é cheio de passado e de futuro. São nomes, pessoas, lugares, são desejos, medos, pequenas certezas e incertezas mil. São desencontros, desagrados, desentendimentos, desalentos e desacatos contra meu passado, contra aquele que acreditava muito na humanidade, mas duvidava profundamente de Deus, contra quem, hoje, ri desiludido da miséria humana, isto é, de si mesmo, contra o menino que fui, e que ainda vive em mim, mas que não mais sou, pelo que sei, pelo pouco que sei de mim. Dentro de algumas horas o relógio, este marcador cartesiano, matemático, decretará uma sentença, ganhará como que um aspecto metafísico: é o tempo, é meu dia. Todo aniversário tem um pouco de morte. Talvez a vida seja mesmo isso: pequenas mortes que nos fazem cada vez mais nós, e assim, de pouco em pouco, enfim, sós.
Jeferson Torres
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