Os compositores do período Clássico, do Romantismo, e também os da música erudita do século XX passavam meses, às vezes anos, dedicando-se pacientemente ao árduo processo de composição que, invariavelmente, tomava conta da vida mesma do compositor. Os crescendo e erupções repentinas nas peças de Beethoven, por exemplo, são expressões de sua personalidade forte, de seu espírito libertário e individualismo marcante. É o que você poderá assistir na 6ª sinfonia de Beethoven, titulada com o sugestivo nome de "Pastoral". Trata-se de uma peça programática (ou de programa), isto é, uma obra musical destinada a criar uma espécie de quadro sonoro - termo que Beethoven, no entanto não aprovava! - e apresentá-lo ao espectador. No caso, o sentimento bucólico da vida no campo. Reparem no uso das trompas e na seção das madeiras: Beethoven foi um gênio não só da composição musical, mas também da orquestração:
Da mesma forma, podemos assistir na desconstrução dodecafônica, o sentimento de rebeldia contra um estado de coisas, um pensamento, contra uma cosmovisão, que no entanto é também a consequência de um caminho de afronta contra os padrões estéticos do classicismo e que já vem desde o próprio século XIX. No entanto, Arnold Schoenberg, pai da música dodecafônica, nunca afirmou de si mesmo, que era um divisor de águas propriamente falando - muito embora o atonalismo tenha sido sim uma ruptura evidente - mas como um continuador, uma mente que apreendeu os processos composicionais clássicos e românticos e apenas seguiu o caminho que já estava sendo traçado pelos seus antecessores. Acontece que já no século XIX o extensivo uso de cromatismos, notas de passagem e acordes de empréstimo modal nas peças musicais insinuava novos rumos que se abriram com Schoenberg e seus discípulos. Querem ouvir um pouco de Schoenberg? Ouçam, por exemplo, Pierrot Lunaire:
O século XX, o século da bomba atômica, viu explodir em milhares de tendências e subtendências os caminhos e (des)caminhos da arte. É o século não só de Schoenberg, mas também de Stravinsky, de Villa Lobos, de Ravel, de John Cage, de Philip Glass, de Arrigo Barnabé, dos Stones, de Jimi Hendrix, de Coltraine, dos Beatles, de Tonico e Tinoco e de Fernando e Sorocaba. Não há propriamente uma história da música no século XX: existem histórias da música.
Reconheço no entanto que o mesmo poderia ser dito sobre a música nos períodos anteriores da história da música. Do barroco, poderíamos falar na história da música de Bach, da relação entre o gênio compositor e as obras por ele compostas, e também tentar o impossível, abarcar os compositores que se inspiraram em Bach, e encontrar o que há de Sebastian em Amadeus, em Ludwig ou em Schoenberg. Além do mais, existe um outro problema que não pode ser desconsiderado quando o assunto é história: a história passada nos é contada, e se é contada, é contada por alguém que tem necessariamente uma determinada postura em relação a essa história: existe a história, mas existe também a historiografia. A historiografia, a escrita da história, se segue uma determinada corrente de pensamento, necessariamente sublinhará alguns aspectos do ocorrido em detrimento dos demais, já que não é possível ao ser humano, um ser mortal, compreender a totalidade dos fatos ocorridos no passado, apreender a história em seu todo.
Quando digo que é mais coerente falar em "histórias" da música no século XX - no plural - falo sobre a explosão artística derramou estéticas (e perspectivas éticas) mil pelo século da bomba. Podemos falar na história da música atonal - tratando da crise na tonalidade até a influência do atonalismo na música popular - ou da música eletrônica, ou então no minimalismo, ou ainda das discussões sobre o fim da história da história da música. Temos hoje todos esses nomes para carregar nas nossas costas, todas essas correntes, e também essa aparência de liberdade que no entanto é uma perigosa falácia. Reflexo do relativismo moral, do utilitarismo, da crise na filosofia, da perda de sentido, tudo vira pó: o "bom" é tão pessoal quanto o "belo", e nesse mundo de narcisos, todos os discursos sobre estética acabam se tornando apenas o eco do que algum grande "intelectual" já disse há algumas horas atrás.
A crítica da pós-modernidade:
Pós-modernidade: mas que bicho é esse? - perguntam alguns pelos cantos. Será um monstro que está nos atormentando sem que percebamos sua presença? É uma nuvem invisível que paira sobre nossas cabeças? Ou será que é tudo isso ao mesmo tempo?
Cada período histórico recebe, à posteriori, um nome que lhe é conferido pelos historiadores que, debruçando-se sobre o passado e percebendo numa determinada época características que possam ser tidas como próprias dessa época. Se eu pudesse usar uma palavra para descrever o tempo em que vivo, diria que vivemos num baile de demoníaca confusão. Em muito, essa confusão decorre do espírito revolucionário que cresceu e ganhou força desde o século XIX, com sua revolta contra Deus, e com o desejo desenfreado de destruir o mundo e erguer sobre suas cinzas um "admirável mundo novo" de justiça e paz eterna na Terra. Parece engraçado, e de fato é no mínimo tragicômico, como os crápulas sanguinários sempre reinaram em nome da justiça, do "bem" e do "bom", e sempre em nome desses ideais tão "nobres", impuseram ditaduras. Talvez seja porque o que passa a definir o que é o tal "bom" não é mais um norte metafísico, mas um projeto político preciso que cabe na cabeça do ditador, mas não no plano da realidade concreta, de modo que, para que tal se concretize, acaba sendo necessário, antes, eliminar os contrários a fim de que, enfim, sejam todos iguais de fato e a tal "justiça" reine enfim: justo é o que o é segundo a visão do rei, e calam-se as vozes dissonantes, seja pelo poder da pilhéria, do bullying ideológico, seja pelo poder do canhão.
A beleza sempre teve - e ainda tem - um que de metafísico, e o belo, por sua vez, sempre teve um que de bondade. A crise pós-moderna pode ser vista, portanto, como uma crise metafísica: a revolta contra Deus traz consigo a revolta contra o universo - criado por Deus - e a defesa da criatura como ente digno de louvor em despeito do Criador: cultua-se a própria Natureza, que é então assumida como uma forma de divindade. O homem, por sua vez, assume o papel de divindade por excelência, e a política toma o lugar da religião, ganhando um aspecto redentor. Os marxistas - e sobretudo os adeptos da teologia da libertação - poderão afirmar, porém, que toda essa náusea é fruto do desenvolvimento do capitalismo e de sua opressão inerente. Mas o marxismo, com sua teoria sobre a classificação da sociedade entre opressores e oprimidos e a proposta política de uma redenção pela vitória dos oprimidos contra o julgo dos opressores, é expressão dessa mentalidade antirreligiosa - e sobretudo anticristã - que o século XIX traz consigo, e que se expande pelo século XX. Um marxista dirá por certo que o Capital tornou-se o mestre e o Senhor da beleza, e sujeitou qualquer ideal superior ao cruel jogo mesquinho de interesses econômicos, posto que a ótica marxista acaba por reduzir o problema a uma questão histórico-econômica, dado compreender a própria história, não do ponto de vista do ente que crê na Existência do Ser supremo, mas segundo aquela que enxerga em Deus a projeção da miséria humana, e um consolo para anestesiar a dor da opressão.
O filósofo inglês Roger Scrutton nota esses problemas e os denuncia no documentário "Por que beleza importa", que os convido a assistir:
O fato é que, ainda que fulano ou ciclano possa criticar a música de Michel Teló ou de Fernando e Sorocaba, e preferir Bach a Ivete Sangalo, a razão apresentada para tal crítica sempre retornará ao debate sobre estética, ética e política. Seja na mesa de um bar, numa sala de aula de uma universidade por aí, ou dentro de casa, esse debate sempre acabará tocando em questões que estarão necessariamente relacionadas a problemas de ordem ética, est(ética) e política. Se um diz que Bach é "melhor" que Michel Teló, diz - admita-o ou não - que existe um "bom ideal", ao qual o primeiro mais se aproxima, e contra o qual o segundo mais se distancia. Sendo assim, indiretamente, por meio da estética, intui, do belo, o bom, e reconhece neste aquele como o observador reconhece o objeto na imagem que o espelho do objeto reflete.
Se, no entanto, não reconhece que haja um bom ideal, tampouco poderá estabelecer relações de grandeza e proximidade e, consequentemente, falar em um "melhor".
Poderá, no entanto, dizer que esse bem "ideal" o é enquanto função de quem idealiza, do indivíduo, e que portanto é melhor segundo o critério pessoal de um ou de outro, mas nunca de um coletivo qualquer. Assim sendo, nada obsta a pessoa X gostar de Michel Teló e não gostar de Bach, e a pessoa Y o contrário, sendo que ambas estão igualmente corretas segundo seu ponto de vista. Esta visão é própria do relativismo ético/estético, segundo o qual algo pode ser bom ou belo relativamente aos critérios de um, e não aos critérios de outro, e que esses critérios tem razões de ser históricas e culturais. No entanto, esse aparente discurso de sobriedade e respeito para com a visão alheia, mascara sua fragilidade, já que, nesse caso, caberá justamente àqueles que detém maior poder político e econômico delegar à sociedade regras tácitas de comportamento, padrões morais e estéticos. Se tiver eu dinheiro suficiente para produzir um CD de axé e fazê-lo tocar no Faustão, na novela das 8 e nas rádios, ele será um "sucesso de público" - de público por consentimento servil - e talvez mesmo de crítica, já que esta pode bem estar a venda, e por preços bem razoáveis, diga-se de passagem.
Tampouco terá aquele que não reconhece a existência de valores morais objetivos - que tenham razão de ser independentemente da época ou da sociedade - motivos sólidos para justificar a condenação ao estupro ou ao infanticídio, por exemplo. Poderá, é bem verdade, criticar o uso de Deus como desculpa para a prática de atos horrendos, quando praticados em nome de Alah ou de Jesus, mas o de afirmar que estes ator são de fato "errados", senão que o são somente de acordo com seus próprios critérios ou os critérios da sociedade de nossa época. É assim que o discurso materialista encerra-se em si mesmo, e acaba por criar labirintos dentro dos quais acaba por se perder. Se por outro lado o debate sobre a existência de Deus e a atualidade das Escrituras no mundo atual e do diálogo inter-religioso é outro importante problema da "pós-modernidade", também a crítica do pensamento materialista - sobretudo o de caráter marxista, muito presente no Brasil e na América Latina - o é.
O filósofo cristão Santo Agostinho afirmou certa vez que "quem procura a Verdade, procura por Deus". O relativismo estético e moral é já em nossos dias assumido pelo senso comum como "Verdade". Basta perguntar para um amigo próximo sobre questões concernentes aos problemas de ordem moral ou estética, e muito provavelmente ouvirá que "cada um tem seu gosto e pronto", ou então que "não existe um bem ideal, cada um tem uma visão das coisas". No entanto, no instante seguinte, poderá criticar isso ou aquilo, e dizer que não é música, que não é arte, que não é bom nem belo. Talvez fique chocado ao saber que índios brasileiros tem praticado o infanticídio, mesmo que por motivos culturais, ou talvez - o que pode ser pior - apenas sorria distraído, e reflita por um instante sobre a beleza do multiculturalismo. Quando uma conveniente mentira consegue se passar por Verdade, vestindo-se de aspectos verdadeiros e sendo vendida por meio da indústria cultural e das escolas, ela não deixa de ser uma mentira, e talvez uma perigosa e sedutora mentira: aquela que vende a liberdade como um valor absoluto, e faz com que, entorpecidos pela própria sensação de liberdade que a mentira proporciona, os sonhadores não consigam perceber o pesadelo que na verdade vivem.
Se alguém vos disser que a verdade não existe, esse alguém não quer que assumamos o dito como expressão da verdade.
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