Partamos do princípio de que a história, passada, é transmitida através do discurso escrito. Depois de Marx, sobretudo, a historiografia se reduziu a isso: a análise da relação dialética entre os opressores e os oprimidos, cuja síntese constitui a condição de cada ente, então, reduzido ao seu aspecto político. Ocorre que a filosofia marxista é ateia em si, e, a partir de então, a religião é compreendida não em sua dimensão histórica e teológica envolvida na ideia de uma entidade transcendente, senão somente como o "ópio" que sustenta o povo em sua condição de oprimido. Todo erro tem um que de verdade, e percebendo a medida da verdade, reluz a dimensão do equívoco: a revolução sempre veio de cima e foi financiada pelo capital - concordaria Marx. O opúsculo marxista fecha com chave de ouro: "proletários, uni-vos!" Mas a história mostra que as ideias de Marx, quando aplicadas no mundo real, alimentam o espírito opressor que resiste no próprio humano, desde sempre, movido não apenas por seu aspecto político, como peça de um jogo dialético materialista, mas como indivíduo inserido na História - com H maiúsculo, conceito que se corroi junto a falência da metafísica. A revolução russa caminha para o totalitarismo de Stalin, a chinesa, no de Mao, a cubana apresenta-se em seu quadro paradoxal: Che Guevara, assassino sanguinário que hoje tange as roupas vermelhas de quem não conhece essa história a fundo, mas tem pelo líder argentino - nem cubano era! - muitas vezes uma relação que substitui aquela que um religioso teria com as figuras sacras: é o demônio alçado à categoria de santo, o líder político que se apresenta como deus.
Como sempre foi, como é, como sempre será, as revoluções partem de cima. O grande giro revolucionário que nasce a partir do marxismo, maquiando alguns de seus aspectos e reformando outros, dá-se com Antônio Gramsci: o marxismo cultural. Na perspectiva gramsciana, a revolução deve ser compreendida antes como processo que como um ato de rebeldia direto. É através Gramsci que Marx se insere na cultura por meio da educação, de uma pedagogia do oprimido, e, com o freudo-marxismo de Hebert Marcuse, abraça a psicanálise e a psicologia: o "mal estar na civilização" que Freud nota em seu emblemático ensaio, se transforma numa condição própria do capitalismo.
No que tange a teologia, a filha de Marx nesse campo é a "teologia da libertação", professada com a lamoriosa veemência de um típico revolucionário pelo teólogo brasileiro Leonardo Boff. Toda a teologia pressupõe uma filosofia: a tese da consubstanciação, definida pelos primeiros padres filósofos da Igreja Católica nos primeiros séculos do cristianismo, por exemplo, nasceu de um debate prolongado tecido entre a comunidade de teólogos cristãos da época com base na filosofia grega e nos textos bíblicos. A teologia da libertação nasce do enlace entre a teologia cristã, pautada, pois, pela narrativa bíblica, e a filosofia marxista. A partir dessa ótica, a história do povo hebreu pode ser compreendida como uma grande epopeia da libertação do povo oprimido das garras de seus opressores. Moisés, por exemplo, é símbolo do heroi libertário que salva Israel do cativeiro egípicio, e Cristo reduz-se a um revolucionário político que prega a salvação dos pobres contra o julgo de seus opressores.
Mas a teologia da libertação reduz a ideia de Deus - metafísico, transcendente, onipotente, onisciente, criador do universo, causa primeira sem causa anterior - ao tempo: concede à criatura o status da criação. A libertação - poucos poderiam perceber o ardiloso sussurrar diabólico por trás do beletrismo intelectual de Fausto irônico - é a libertação, enfim, do julgo do último opressor: o Deus mau, todo poderoso: uma teologia de fundo ateísta: não poderia ser diferente, já que abraça uma filosofia ateísta.
Tá, mas e dai?
E daí que, com a lenta morte da metafísica - que se estende pelo modernismo e se agudiza na pós-modernidade - o sentimento de vazio existencial decorrente da condição de órfão, diria Freud, que via em Deus um reflexo da imagem do pai - é preenchido com desculpas vendidas no atacado e no varejo: um novo mito, uma nova onda, um nova "tábua de salvação", como um meio de plantar o paraíso na Terra: tudo isso vira artifício na mão de uma pequena oligarquia que sustenta seu poder na ilusão do ópio outro, ateu, e que é vendido pela imprensa comprada pelo capital dessa mesma oligarquia. Todos, então, como soldados bem treinados para o exército anônimo que os convoca, bradam o mais novo bordão aprendido nos canais do YouTube, na Tv, nos jornais, ou mesmo em teorias da conspiração que, porque chamam a atenção, também podem ser usadas como desvio de foco para o quadro geral que nos compreende. Assim, cada um faz de sua própria vaidade um objeto louvável de pregação revolucionária e, juntos, caminhamos pela trilha indicada por um poder anônimo que tem na midio-cracia sua máscara maquiavélica.
Não me espanta que o ateísmo ganhe força nesse estado de coisas, e que muitas vezes seus partidários apelem para seu ódio como um tipo de argumento, projetando-o na imagem de Deus. O homem moderno é Fausto sedento, e tudo indica que não aprendemos com a História, que, na verdade, a história é uma falácia tendenciosa que semeia o ódio pela imagem de Deus, face outra de nossa imagem...
... num reflexo monstruoso eu observo meu rosto no espelho: sou mortal, e tenho em mim as sementes da destruição: o que direi a mim mesmo, no silêncio da minha consciência, no instante final, quando o finito se depara com o mistério da eternidade?