quarta-feira, 29 de junho de 2011

Sobre pedras e pessoas

 

Como persistissem em interrogá-lo, ergueu-se e lhes disse: “Quem dentre vos estiver sem pecado atire a primeira pedra!” Jo 8,7.

 

O ser humano é um animal que odeia. Caim mata Abel, os irmãos de José vendem-no como escravo aos egípcios, que, mais a frente, escravizarão o povo de Israel, Davi é perseguido pelo seu próprio filho que deseja poder, poder, poder, sem perceber que, enfim, nada mais pode senão morrer. Jesus também foi perseguido por se auto titular o messias prometido pelos oráculos dos profetas.

Atenienses guerriam contra espartanos, que, por sua vez, revidam contra atenienses. Napoleão insurge na França como epíteto da revolução francesa: cabeças de padres e reis rolam por ai. Depois é guerra santa, a Jihad, que uma fatia do islamismo prega como viés teológico para a “salvação das almas perdidas”. Condenar todo e qualquer mulçumano pela barbárie desse grupo seria tão incoerente como condenar todo e qualquer padre como pederastra porque um certo número deles são pegos com a mão na botija – ou em outro lugar.

Não obstante, uma nova “pedra de salvação” surge em meio a celeuma: o ateísmo. Alguns preferem fazer de Deus – qualquer um deles – ou da religião o bode expiatório de sua revolta, aproveitando inteligentemente a carona naqueles que, por sua vez, fazem da religião uma desculpa para sua vaidade. Se é incoerente condenar todo e qualquer ateu ao inferno, é coerente crer que a ira contra religiosos, sejam eles de qualquer denominação, cor, raça, sexo ou nacionalidade, pode sim se converter no combustível de uma barbárie tal qual aquelas que alguns religiosos cometeram ao longo da história por conta de sua vaidade. E não se engane, desde sempre, “tudo é vaidade e correr atrás do vento”. Noves fora, somos todos animais que odeiam, ainda que o clamor pelo “mundo melhor” e a “comunhão universal” entre os povos possa fazer parecer o contrário. Talvez remédios poderíam resolver o problema, talvez camisas de força, mas isso não seria lição, antes, condição, a condição de prisioneiro: em suma, continuamos prisioneiros de nossas vaidades e de nosso ódio.

Nota: você pode discordar da verdade, revoltar-se contra ela, mas isso não muda a verdade.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Aurora, de F.W.Murnau: Cinema e metafísica

 


                                       F.W.Murnau

 

Cenas de Aurora:




 


Aurora, de F. W. Murnau (Sunrise, 1927), baseado no romance de Herrman Suderman,Viagem a Tilsit, é para mim o melhor filme do mundo. Quando se vê que o grande Eisenstein nada mais fazia senão juntar imagens com tanto esforço para produzir, por associação, alguma patriotada a serviço da propaganda comunista, aí é que a arte de Murnau nos surpreende por sua capacidade de conduzir, através do jogo de imagens, a algo que está acima de toda imagem e mesmo acima de nossa capacidade de expressão em palavras.

A trama se desenvolve em três níveis: o personagem (o ser humano), a natureza e o sobrenatural, tudo perfeitamente encaixado e sem nenhum apelo a uma linguagem indireta ou "hermética", no sentido de obscura, embora haja ali grandes doses de hermetismo no sentido de alquimia espiritual.

O tema de Aurora é o jogo entre as decisões humanas, as forças da natureza e a misteriosa providência que tudo ordena sem alterar a ordem aparente das coisas, sem produzir acontecimentos de ordem ostensivamente sobrenatural, e jogando apenas com os elementos naturais.

O filme começa com dois amantes — um fazendeiro de Tilsit e uma turista — tomando a decisão mais arbitrária que se possa imaginar, uma decisão que não é fundada em coisa nenhuma: fugir, sendo preciso, para isso, matar a mulher do fazendeiro. Essa decisão brota de uma paixão momentânea, uma extravagância fundada num mero desejo, que não corresponde ao sentido de vida nem da mulher (a moça que quer fugir com o fazendeiro), nem do fazendeiro e não está encaixada logicamente no quadro normal de possibilidades de suas vidas. A possibilidade normal seria tudo não passar de um episódio fortuito, algo como um namoro de férias - o que realmente a coisa era no fundo. Na hora em que eles decidem transformar este namoro de férias numa união duradoura sacramentada pelo homicídio, então Murnau começa a colocar um outro enredo em cima do enredo inicial.

Se a vida do personagem antes do caso amoroso tinha uma certa solidez, ele mesmo não estava consciente disso, ou então teria rejeitado taxativamente a proposta da amante. Mas ele a aceita. E se deixa sair da lógica de sua vida para entrar nas névoas do imaginário. Não por coincidência, a cena em que eles se encontram para tramar o homicídio se dá num lamaçal e entre névoas. Ele atravessa uma bruma, como quem vai sair do plano real para ingressar no plano imaginário, onde vai encontrar sua espectadora.

O resumo do filme é o progressivo retorno desse mundo mítico à realidade que o personagem havia abandonado. Após aquele breve instante em que ele prefere o imaginário ao real, por todo o resto do tempo o que vemos são as operações do destino para devolvê-lo à vida real. Mas esse retorno não é fácil. No primeiro instante, a reação do fazendeiro é simplesmente de ordem sentimental, o sentimento de pena pela esposa que ele não amava, e arrependimento. Mas esse arrependimento não é ainda uma conquista sua, pois ele se dá de maneira passiva e na esfera do imediato. O retorno à realidade terá de passar pela reconstrução de todos os elementos que foram compondo a sua vida.

Quando, após a tentativa de homicídio falhada, ele acompanha a esposa até a cidade, ela ainda está muito triste e ele tenta recomeçar o diálogo com ela – afinal, ele tinha se tornado um estranho. Ele tenta retomar a condição de marido, como quem diz: "Eu não sou um assassino, eu não sou um estranho", mas ele, de fato, não é mais o mesmo. Ele terá de reencontrar sua velha identidade, e evidentemente isso não é tão fácil.

Temos então duas cenas decisivas: aquela em que na casa de chá ele oferece um bolinho a ela, e ela acaba não aceitando; e a cena do casamento a que eles assistem na igreja. Nesse casamento, novamente não por coincidência, os convidados estão à porta, esperando a saída dos noivos, e quem sai são eles, que vieram andando na frente dos noivos e nem percebem o que se passa em volta. Na igreja, ele toma novamente consciência do sentido do casamento, ou seja, do que ele tinha ido fazer ali, de por que é que ele estava ao lado daquela mulher que até poucas horas atrás já nada significava para ele. De certo modo, ele tem aí uma recapitulação de toda a sua existência.

No instante em que ele desiste de matar a esposa, ele já havia se arrependido por dentro, mas isso não era exatamente um arrependimento, no sentido cristão. Era remorso. Que é remorso? Um sentimento de culpa desesperador. O arrependimento é um sentimento de culpa acompanhado de alívio, de esperança de poder resgatar de algum modo o que foi perdido. O homem só passa por isso na igreja: neste momento, ele troca o remorso pelo arrependimento.

Mas aí a trama ainda não complicou. É preciso que ele confirme esta intenção. Ele precisa adquirir certeza absoluta de sua identidade recuperada. No instante em que aceitou matar, ele jogou fora toda a sua vida, ele agiu como se fosse um outro. Um outro que teria uma outra vida, num outro lugar, com outra mulher. Na cena em que a amante fala da vida na cidade e ele se vê dançando nas boates, ele imagina para si uma outra biografia, que começaria miraculosamente do nada. Após ter construído toda uma vida como homem do campo, ele repentinamente se vê em outra cena, e para vivê-la realmente ele precisaria ter tido toda uma outra vida, precisaria trabalhar em outra coisa, ter nascido em outro lugar. O apelo dessa vida imaginária o entorpece de tal maneira que ele perde sua identidade: ele não está mais conectado nem com a esposa, nem com a profissão, nem com o ambiente material, com nada. Ele está desligado do sentido da vida, e por isto esta vida lhe parece vazia e tediosa — é a vaidade psicológica, que projeta na vida em torno a miséria interior do homem incapaz de assumir seu dever vital.

O restante do filme vai encaixá-lo de volta, primeiro, em sua vida; segundo, em seu casamento; terceiro, no lugar onde ele construiu a sua vida, para de certo modo devolvê-lo ao sentido da vida que ele tinha abandonado momentaneamente por um sonho maluco. E como se dará isso? Ele será obrigado, pelo desenrolar dos acontecimentos, a apostar de novo, repetidamente, no valor de tudo aquilo que tinha desprezado, e terá de apostar cada vez mais alto. Ele reconquista por um esforço de vontade consciente tudo o que havia abandonado por vaidade.

Ele começa por pedir perdão; depois oferece o bolinho; em seguida, na igreja, tem um segundo arrependimento e faz como que um voto; tira então uma fotografia, que é como uma fotografia de casamento; e por fim vai para um parque de diversões, que seria o equivalente da viagem durante uma lua-de-mel. Com tudo isso, ele recuperou sua identidade de casado, mas não recuperou ainda o sentido da sua vida. Para isto ele precisará ainda apostar mais um pouco.

E a aposta será uma segunda tentação, que já não vem por meio humano, mas por meio dos elementos da natureza, quase que propositadamente mobilizados para esse fim, que executam a intenção dele, isto é, afogam realmente a mulher que ele antes tinha tentado afogar. Veja; aquilo que ele sonhou, já não é mais ele que está executando, é um poder imensamente maior que o dele, ou seja, ele pediu e o céu executou. Nesta hora, ele tem de fazer a aposta decisiva para salvar aquela mulher que ele quisera matar.

Enquanto vai retornando para casa, dá-se a tempestade, e nesse retorno é que se dá também o retorno dele à plena posse do sentido da sua vida. Ele vai dizendo uma série de "sins" a tudo aquilo a que antes tinha dito "não". Mas quem se opõe a esse sim, quem é o tentador que lhe oferece novamente o não? Agora já não é o demônio: é o próprio Deus, para saber se ele quer mesmo. O filme é teologicamente exato ao mostrar que o diabo age dominando a imaginação, a fantasia e os desejos, enquanto Deus age através dos acontecimentos reais, do reino da natureza transformado em mensageiro do sobrenatural.

O personagem será então obrigado a reafirmar com muito mais força sua adesão a todos os valores que havia desprezado. E terá agora de arriscar a sua própria vida para defendê-los e, mais ainda, arriscar de certo modo a própria salvação de sua alma; pois não pode evitar o sentimento de revolta contra os céus quando pensa que a mulher morreu, e ele se sente preso numa armadilha terrível montada pelo diabo, que executou o pedido do qual ele já tinha desistido. Ele tem de reafirmar e apostar tudo de novo, desta vez lutando contra todas as probabilidades aparentes.

Aurora, na verdade, transcorre para trás. A mudança do fazendeiro para a cidade, planejada no começo, não se realiza, e tudo o que é importante acontece no retorno da cidade para o campo, onde ele vai novamente botar os pés no chão. O filme tem algo de "romance de formação" (Bildungsroman), gênero tipicamente alemão, que tem como conclusão a formação da personalidade humana, onde o indivíduo, através de seus erros, se transforma num homem de verdade. Um exemplo é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister; Herman Hesse também fez isso em O Lobo da Estepe e em Demian. São romances cuja única conclusão é o crescimento humano em direção à maturidade. Mas esse crescimento é sempre uma diminuição, é sempre o indivíduo voltando à terra, depois de haver sonhado alguma maluquice e viajado por um céu de mentira. É uma apologia caracteristicamente germânica do "pão-pão, queijo-queijo" como valor supremo da existência. A idéia, portanto, é de que o sentido da existência está colocado na própria existência: ela tem sentido em si mesma, e não num outro mundo colocado acima deste, como o mundo imaginário que a amante oferece ao personagem, e que é mais ou menos como o mundo da falsa vocação teatral de Wilhelm Meister. Meister tem o sonho de ser ator, mas ele não serve para ser ator, ele não é um ator, ele é um burguês no fim das contas, e sua descoberta de que é um burguês de classe média alta, um sólido burguês, é a verdadeira educação dele. A vida cotidiana do burguês, na medida em que é real, e pelo simples fato de ser real, tem em si uma força mágica superior a toda imaginação, porque não é constituída de imagens, tem uma tridimensionalidade que a fantasia não tem.

O imaginário como alternativa oferecida pelo tentador diabólico é um mundo bidimensional, um mundo só de imagens, imagens no meio da névoa. A cena em que o fazendeiro e a amante conversam no pântano remete à carta 18 do Tarô, que é A Lua: o homem de um lado, a mulher de outro, como o cão e o lobo; a água em baixo e a lua no meio, formando um losango. Esse "mundo da lua" é o mundo dos reflexos na água, onde as coisas não acontecem verdadeiramente, apenas parece que vão acontecer. A imagem pode ser encantadora, mas ela não tem a tridimensionalidade, a profundidade da vida real. É no retorno à terra que o homem encontra o verdadeiro céu, o sentido da vida.

Ora, a coisa mais espantosa desta vida real é justamente que nela as coisas não chegam a ter uma explicação final, ao passo que o mundo imaginário é facilmente compreensível e explicável, pelo simples fato de que foi você mesmo que o imaginou. Na hora em que o personagem imagina uma outra vida na cidade, tudo para ele faz sentido, porque é ele mesmo quem quer que as coisas sejam assim ou assado. Aí a relação causa e efeito é perfeitamente nítida, ao passo que, no retorno à vida real, o jogo de causa e efeito é infinitamente mais complicado, mais sutil, e nunca se pode dizer que isto aconteceu por causa disto ou daquilo exclusivamente; há sempre um tecido, um emaranhado de causas, e nunca se consegue assinalar uma linha causal única.

Então, por que a tempestade acontece justamente no momento em que ele estava voltando? Ela poderia acontecer em qualquer outro momento. Não há no filme a menor insinuação mágica a respeito disso. Não foi um anjo quem fez cair a tempestade, mas, se ela não acontecesse, certamente a resolução do sentido da vida desse indivíduo tomaria uma outra direção. As causas naturais interferem e não se sabe nunca se existe nelas um propósito ou não. Não se pode dizer propriamente: "Deus fez cair a tempestade para tal ou qual finalidade ", porque Deus não aparece no filme, só a tempestade. Cada um está livre para interpretar isso como uma intencionalidade divina ou como uma casualidade, mas nos dois casos este fato entra como elemento componente de umsentido geral.

Quando cai a tempestade e a mulher se afoga, nada no filme nos permite interpretar que foi Deus que a fez cair propositadamente para ensinar algo ao personagem. Deus não aparece, não há a menor insinuação de um sentido religioso evidente envolvido no caso. Nós simplesmente vemos a tempestade, vemos o que aconteceu. Não podemos dizer que foi uma causa divina, ou uma causa natural fortuita, mas em qualquer dos casos esse acontecimento se encaixa não na ordem das causas, mas na ordem do sentido, e e força causal divina não aparece como causa eficiente e sim só como causa final, que age através da combinação natural das causas eficientes. Qualquer que seja a causa, para o personagem, aquele acontecimento tem um sentido muito nítido, não subjetivamente, mas objetivamente, dentro da vida real dele. E que sentido é esse? O da intenção maligna da qual ele já havia desistido, e que é realizada justamente no instante em que ele a tinha renegado e em que ele a temia. Os seus pensamentos viram ações no exato instante em que ele não os aceita mais. Este sentido não é subjetivo, não é o personagem quem interpreta as coisas assim: elas simplesmente são assim, em si mesmas e objetivamente. Sem precisar recorrer à idéia de uma providência que propositadamente está "fazendo acontecer" isto ou aquilo - e esta é uma das coisas mais bonitas do filme - o evento tem um sentido objetivo, e este sentido, por meios puramente naturais, vai na direção indicada pela intencionalidade divina, que é a reconquista do sentido da vida. É uma espécie de ironia da natureza, e por momentos o personagem se sente vítima desta ironia. Ela pode ser premeditada ou fortuita, isso não a torna menos irônica. Para ele, naquela hora, pouco interessa se foi o diabo que fez chover, para prejudicá-lo, ou se a natureza inocentemente e quase que mecanicamente produziu a chuva. A tempestade é irônica nos dois casos, e em ambos os casos faz sentido.

Há aí uma distinção muito nítida entre o a ordem das causas e a ordem do sentido. Só que esse sentido não é subjetivo, não é apenas humano, é um sentido real; dentro do contexto dos acontecimentos, a tempestade tem uma significação nítida, é uma ironia cruel da natureza, pouco importando se foi intencional ou não. Na verdade, se não foi intencional é até mais cruel, porque então o destino do personagem parece mais absurdo ainda. De repente, ele cai totalmente dentro do absurdo que ele mesmo havia premeditado. Se houve intencionalidade por trás dos fatos, foi uma intencionalidade pedagógica, e se não houve, foi uma coincidência irônica.

Essa ironia já aparece no episódio do cachorro. Por que o cachorro, na hora que eles vão sair de barco, sai latindo atrás da dona? É porque ele anteviu que ia acontecer uma desgraça? Ou é simplesmente porque ele quer ir atrás da dona? O filme nada diz a esse respeito. Você está livre para interpretar como quiser. Mas como quer que se interprete a causa que fez o cachorro se mover, o que importa não é a causa, mas o sentido que esse episódio acaba tendo no conjunto. Por quê? Porque, ao retornar para deixar o cachorro em casa, o homem poderia ter desistido da viagem e do plano assassino. O cachorro aparece ou como uma casualidade ou como uma intencionalidade, que poderia ter salvado a mulher antecipadamente e bloqueado o curso posterior dos acontecimentos. Poderia, mas falhou. O cachorro não teve força suficiente, é um elemento natural demasiado isolado e fraco para por si determinar o rumo dos acontecimentos. O cachorro, pura sanidade natural, é impotente para deter o mal; para isso será preciso a mobilização de todos os elementos da natureza — a tempestade.

Mas em todos os instantes o que se vê é que, não importando a causa, o sentido é nítido. E esse sentido não é subjetivo. De fato, a ação do cachorro naquele momento poderia ter impedido a desgraça. Quase impediu. E esta é outra característica desse filme: o tempo todo você tenta prever o que vai acontecer em seguida, e essa previsão toma o aspecto de um voto de fé: você deseja que as coisas tomem um certo rumo, você torce pára que isso aconteça — e, nunca acontecendo o que você deseja, no fim o resultado é, pelos meios mais impremeditados e surpreendentes, exatamente aquele que você desejava. Na hora em que você sabe que o sujeito vai tomar o barco para matar aquela inocente mulherzinha, você deseja que ele não faça isto. E na hora em que o cachorro começa a latir e vai atrás, o cachorro está realizando de certa maneira o seu desejo, mas ele falha. Nesta cena, todo mundo vacila: você, o cachorro, o personagem, a mulher – ela também não sabe direito o que vai acontecer. Ela também está numa interrogação. Todos esses elementos, todos esses fatos têm sempre um sentido muito nítido, sempre referido ao antecedente e ao conseqüente. Em nenhum momento você depende da interpretação subjetiva que os personagens fazem.

A partir de elementos psicológicos simples, cria-se esta história profundamente enigmática na qual todos os elementos concorrem, afinal de contas, para uma tomada de consciência e para que o personagem retome posse da sua vida. Está subentendido no filme inteiro que tudo está concorrendo para um sentido final. Mas se isto ocorre conforme uma premeditação ou não, esta é uma questão deixada em suspenso. Faz parte da realidade da vida você não saber quais são os elementos que determinaram seu destino. Mas também faz parte da vida você poder compreender o sentido do que está acontecendo. Eu não sei quem foi que fez chover, nem com qual intenção fez chover, eu sei que para a ordem constitutiva da minha vida, neste momento, a chuva tem um sentido muito nítido. E o sentido, o que é? É a obrigatoriedade moral de uma ação, que por sua vez faça sentido dentro do caminhar da minha vida e dentro de minha própria identidade. Sendo eu quem sou, vivendo do jeito que vivo, tenho a obrigação de fazer isto assim e assado, pois só assim minha vida fará sentido. Viktor Frankl daria pulos de entusiasmo se visse este filme.

A interpretação metafísica fica condicionada a uma interpretação ética, que a precede de certo modo. Pouco importando se existe uma providência por trás de tudo ou não, o sentido dos fatos se impõe na medida em que impõe a obrigação de agir de uma determinada maneira, porque é a única que faz sentido. O problema da providência está colocado não na esfera causal, mas na esfera do sentido, pouco importando se essa providência age através de causas naturais ou sobrenaturais.

A chuva pode ser uma mera coincidência. Veja-se isto do ponto de vista de Deus. Se já estivesse predeterminado por leis naturais que iria chover naquele determinado instante, Deus certamente sabia disso, e não precisaria mandar uma chuva especialmente para que as coisas se resolvessem desta ou daquela maneira. A simples somatória de causas naturais e humanas é suficiente para criar um sentido. A providência está aí para quê, então? Para criar e manter o sentido.

A providência, sendo sobrenatural, não precisa no entanto recorrer a meios sobrenaturais. Do simples jogo das causas naturais e humanas em número indefinido, haverá um resultado x. Não era necessário uma premeditação para aquele caso específico: estava já tudo ordenado, de tal modo que o homem, que é um ser pensante e que tende sempre a criar uma unidade de sentido em sua vida, aproveitaria, para realizar esse sentido, os acontecimentos quaisquer que fossem. Desta maneira, o próprio caráter fortuito dos acontecimentos é de certo modo superado. São fortuitos quanto à sua causalidade eficiente, isto é, àquilo que os desencadeou, mas não quanto à sua causa final. Ou seja: um monte de causas eficientes dispersas de modo fortuito podem concorrer a uma causa final de natureza fundamentalmente boa. Este é um elemento da filosofia de Leibniz (Princípio do Bem Maior). Não sei se Murnau pensou em Leibniz nessa hora, mas para ser leibniziano não é preciso ter lido Leibniz: é uma questão de personalidade e de afinidade espiritual espontânea. Em todo caso, não é inútil lembrar que, antes de se dedicar ao cinema, Murnau estudou filosofia e teologia.

Num outro filme dele, Tabu, há uma mensagem de sentido aparentemente contrário: a causalidade humana e natural concorrendo para um desenlace trágico. Isso também pode acontecer. De qualquer modo, se tudo termina em comédia (quando tudo termina bem é comédia, por mais que a gente sofra) ou em tragédia é coisa que não é decidida na ordem das causas eficientes, mas na ordem da causa final, e com isso escapamos da famosa polêmica entre determinismo e livre-arbítrio.

As duas coisas de certo modo se exigem mutuamente; não há como conceber uma sem a outra. Existe determinismo na medida em que certas causas desencadeadas vão fatalmente produzir certos resultados. Podemos tomar as causas naturais que aparecem neste filme, como o comportamento do cachorro e a tempestade, como simples resultados de leis naturais. Há processos naturais que explicam esses fatos. Pode estar tudo predeterminado na ordem das causas eficientes, mas nada pode estar predeterminado com relação ao fim, à finalidade. Não haveria nenhum sentido em criar um ser capaz de escolher, capaz de agir, capaz de ter culpa inclusive, se a finalidade de vida dele já estivesse dada infalivelmente de antemão. Isso seria um nonsense: não é necessário um ator consciente para desempenhar um papel mecânico; não seria preciso um ser tão inteligente quanto o homem para desempenhar esse papel. Portanto, existe uma certa margem de manobra dentro mesmo do determinismo da natureza. O sentido da vida existe, mas sua realização pelo homem é eminentemente falível.

Podemos dizer que o cachorro "não teria" outra alternativa senão ir atrás da dona, porque esse é seu instinto, e a chuva também não teria outra alternativa senão cair naquele preciso momento. O homem é que tem a alternativa de entender ou não entender o que está se passando e de dirigir a vida dele num sentido que esteja harmonizado com quadro natural, com o seu dever e o sentido da sua vida. Para realizar o sentido de sua vida, ele precisa compreender o que se passa em torno, e compreender em quê essas coisas o influenciam.

Os fatos (como por exemplo a amante, que não existia na vida do personagem e que chega de férias a um determinado local num determinado momento, ou seja, faz uma intervenção) vão se sucedendo e vêm do ambiente em torno. O indivíduo mesmo é que entende ou não entende. E para não entender, basta ele se desligar por um momentodeste tecido denso da causalidade e entrar num outro mundo onde ele próprio é a única causa; que é o mundo imaginário, um mundo inteiramente lógico e nítido, onde ele inventa as causas e os efeitos se seguem da maneira mais lógica possível. É a lógica do plano criminoso proposto pela visitante: nós matamos a sua mulher e vamos para a cidade, e você vai morar lá comigo e vamos dançar naquela boate onde sempre vou, etc., etc., etc. Tudo isso é muito lógico, de maneira linear.

Mas, no retorno à vida real, as causalidades não são mais lineares, mas concomitantes e em número inabarcável. A conexão entre elas pode ser percebida ou não, porque o indivíduo mesmo é um elo de muitas cadeias causais cruzadas. Uma coisa é acontecer uma chuva e outra coisa é acontecer a chuva na hora em que você está ali. Mesmo do ponto de vista puramente natural, do ponto de vista físico, não é a mesma coisa chover sobre um terreno onde não há nenhum ser vivo, sobre um terreno onde há plantas, sobre um terreno onde há bichos e sobre um terreno onde há gente. As conseqüências da chuva fatalmente serão diferentes nesses vários casos. No caso aqui presente, chove na hora em que está ali exatamente aquele cidadão, portanto essa chuva já não é igual para todos, ela tem significados diferentes.

Ele poderia não ter compreendido a situação. Poderia ficar tão idiotizado pela morte da mulher que não sentisse sequer a ironia da situação, não tirasse a lição moral nela implícita. Ele consente em tirar esta lição porque continua dialogando moralmente com a natureza, perguntando: "O que você quer de mim?", ou seja: confiando no sentido da vida mesmo quando este sentido se tornou invisível por efeito dos erros que ele próprio cometeu. Ora, a natureza nunca responde totalmente, mas é o ser humano que completa as suas respostas. E na medida em que responde, responde assumindo o sentido e as implicações todas, as implicações reais que aquilo tem. Ou então fantasiando em cima, inventando, fugindo do dever e do sentido da vida.

Quando vemos que tudo isso foi dito só com imagens mudas, notamos que este filme é realmente uma obra-prima assombrosa. No sentido de jogar com um monte de causas para provocar um efeito final, existe uma analogia entre Aurora e A Tempestade de Shakespeare, mas a diferença é que nesta há um agente regendo as causas, que é o mago Próspero, enquanto que aqui, não. Aqui não aparece mago nenhum, você sequer sabe quem está dirigindo a cena ou mesmo se ela está sendo dirigida. O que você sabe é que ela faz um sentido tremendo. Perguntar se isso foi premeditado ou não, neste caso, é inteiramente ocioso, porque a pergunta não é essa. A pergunta não é quem está dirigindo e com que propósito, a pergunta é: O que precisamente está acontecendo? É uma chuva como qualquer outra? Não. É a chuva que acontece neste momento e mata a mulher que o sujeito queria matar meia hora atrás. O momento em que isso acontece não é indiferente. A vida real é justamente essa densidade na qual todos os fatores são absolutamente inseparáveis, e a única coisa que está realmente em jogo é se você vai aceitar essa densidade ou se vai fugir para um outro mundo, plano e sem gravidade, o mundo da fantasia subjetiva. É justamente esse drama que dá ao filme todo seu valor e seu impacto.

A história que o personagem havia inventado ele próprio entendia perfeitamente, mas, e esta outra história que de fato lhe acontece? São tantos os fatores em jogo, que ele não poderia ter uma explicação completa. Para entender tudo o que aconteceu, ele precisaria ser Deus. Imagine o número de causas que teriam de ser investigadas para se saber por que houve toda essa convergência de acontecimentos. Isso nunca ninguém terá. Em nenhum momento haverá uma explicação completa de tudo que aconteceu. No entanto, longe de compreender isso no sentido vulgar das "limitações do conhecimento humano", temos aí uma indicação preciosa sobre a natureza mesma da realidade: a realidade só é real quando, nela, o conjunto finito dos elementos conhecidos, e que em si mesmos podem não fazer sentido, é abarcado por um infinito que, incognoscível em si mesmo, dá a unidade e o sentido do quadro finito. Sempre que o finito se fecha em si mesmo, pretendendo ser auto-explicativo, estamos no reino da fantasia lógica otimista e prometéica. E sempre que o finito se dissolve num infinito sem sentido, estamos no reino da fantasia macabra. É na articulação sensata do finito no infinito que se encontra o conhecimento da realidade.

O sentido da vida do personagem não apenas não é subjetivo: ele é, por assim dizer, um sentido histórico. O personagem é este homem e não outro, ele teve esta vida e não outra, enfim ele não está livre para sentir o que quiser na hora em que quiser. Ele vai sentir de acordo com o que aconteceu antes e de acordo com o que ele pretende que aconteça depois.

Justamente na hora em que o indivíduo voltava para casa, esperando retornar à sua paz doméstica depois de tudo aquilo que viveu, depois da tentação e do remorso, nesse instante incide a chuva e ela tem esse sentido porque se encaixa na seqüência desse antes e desse depois, e não porque o indivíduo "sentiu" isto ou aquilo. Na verdade, ele poderia não sentir, ele poderia ficar idiotizado. Muitas pessoas, diante de um sofrimento desse tipo, na hora em que a vida realiza sua fantasia macabra, enlouquecem e não querem pensar mais. Aí elas perdem a percepção do sentido do que está acontecendo, mas esse sentido continua presente e pode ser reconhecido por quem, de fora, observe o que se passa.

O preço do sentido da vida é entender o que está acontecendo, por mais que doa. Mas entender sempre apenas do ponto de vista humano e sem ter a explicação global. Ora, isso é muito importante para o estudante de filosofia, pelo seguinte: em qualquer investigação do tipo metafísico que se faça, a tendência humana é sempre voar direto para o problema da providência, do determinismo, da intencionalidade divina, tratando desses temas de uma maneira genérica e abstrata, sem ter este arraigamento prévio do sentido da vida pessoal, o qual é, evidentemente, o único intermediário pelo qual se poderia chegar à compreensão da intencionalidade divina. Se você não compreende sequer o que os acontecimentos representam dentro do enredo da sua vida, como é que você vai entender as intenções do Escritor que produziu a obra? Se você não entende nem a história, como é que você vai entender a psicologia do Autor? É ridículo que pessoas de alma tosca, incapazes de apreender e assumir responsavelmente o sentido de suas próprias vidas, se metam a opinar sobre questões filosóficas simplesmente porque leram Kant ou Heidegger. Primum vivere deinde philosophari tem precisamente este sentido: o verdadeiro filósoso é filósofo na vida real e não apenas um estudioso que fala sobre filosofia. Por isso mesmo é que a investigação metafísica nunca pode ser uma mera investigação abstrata no sentido científico e impessoal, ela sempre vai implicar uma responsabilidade pessoal. E a pergunta que se coloca é a seguinte: você aceita compreender o que está se passando na sua vida? E em que medida você vai agüentar? Oitenta por cento dos filósofos a quem você fizesse essa pergunta correriam de medo, porque há certas coisas que são terríveis de entender, sobretudo as conseqüências do que cada um fez na vida.

Construa a hipótese de que exista um Deus, de que Ele conhece seus pensamentos e de que Ele pode, como neste caso, tornar realidade os seus piores pensamentos. Você deseja conhecer esse Deus? A maioria das pessoas, aí, já não vai querer mais. É melhor não saber. Surge aqui a famosa emoção da "máquina do mundo" do Carlos Drummond de Andrade, quando o indivíduo, após ter investigado e perguntado a vida inteira, na hora em que o Universo vai finalmente se abrir e mostrar tudo, ele diz: — "Não quero mais saber".

"como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demostrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera
seguia vagaroso, de mãos pensas."

(Trechos de "A máquina do mundo" - Carlos Drummond de Andrade, em Claro Enigma)

O acesso ao conhecimento de ordem metafísica tem de passar primeiro por um conhecimento de ordem moral e ética que não consiste em "seguir" uma moral ou uma ética já dada e pronta, mas, ao contrário, em de fato desejar compreender a própria vida e realizar o seu sentido, assumindo o dever com todas as forças, porque é na vida real que se vai encontrar o elo entre o natural e o sobrenatural. E onde mais poderia agir o tal sobrenatural, se não fosse no real, neste mundo histórico e humano onde vivemos?

A natureza já está dada, é um fato que está diante nós. Ela já está resolvida, se não de maneira eterna, pelo menos de maneira habitual; embora haja um coeficiente de indeterminismo na natureza, pelo menos no plano macroscópico, no plano da natureza visível, as coisas funcionam segundo uma certa regularidade na qual você não interfere. A interferência do homem nos processos naturais é mínima. Pois bem, onde mais você vai interferir? No sobrenatural? Não, o sobrenatural é Deus, é onipotente, você não pode mexer lá. Então, você não pode mexer, na verdade, nem na natureza e nem no sobrenatural. Você está colocado, por assim dizer, na natureza, mas um pouquinho acima dela, na medida em que pode enxergar a natureza como um todo e perguntar sobre alguma coisa que está para além dela, mas aonde você não pode chegar. Então, onde você está? Exatamente entre um e outro. Entre um conjunto que você enxerga mas não entende e outro que, se conhecer, vai entender, mas não conhece. A natureza é visível e cognoscível, está diante de nós, mas nós não a entendemos, porque não parece ter intencionalidade. Às vezes parece que, outras vezes parece que não, então você não sabe. Como é que vamos saber? Bom, precisamos interrogar o que está além da natureza, aquilo que está acima dela e que a determina. Em suma, precisamos conversar com o Autor da história. Se você conhecesse o Autor da história, tudo estaria explicado; mas você não O conhece. Aquilo que você conhece, você não entende e aquilo que você entende, não conhece. Deus é perfeitamente compreensível; na hora em que você começa a pensar em Deus, você vê que tudo faz um sentido tremendo, mas nós não O vemos, não O escutamos e não O conhecemos. E tudo aquilo que vemos, escutamos e conhecemos nem sempre faz sentido. Você tem o fato em baixo e o sentido em cima. Você desejaria subir para este sentido. Mas onde está o elo? Em você, porque você também existe materialmente, ou seja, você é objeto de conhecimento seu, você conhece o seu próprio corpo, a sua própria vida, exatamente como você conhece a natureza. E qual é o sentido da sua vida? Você tem a realidade da sua vida, mas qual é o sentido dela? Com relação a você mesmo, você também está dividido. Você conhece a realidade da sua existência, mas não o sentido dela. O sentido, é claro, faz sentido, mas você não o conhece. E a vida você conhece, mas não sabe se faz sentido. Então, você é esse elo, porque a cada instante você pode ligar a esfera dos fatos com a esfera do sentido. Como é que você faz isso? Compreendendo o sentido que os fatos impõem, não abstratamente e em si mesmos, mas com relação à sua vida histórica.

Só na medida em que vai aceitando compreender esse sentido que está na sua própria vida, você tem ao mesmo tempo a abertura para aquele laço maior que há entre o natural e o sobrenatural. A relação que existe entre a sua vida e o sentido da sua vida é a mesma que existe entre a natureza e Deus. Sendo você o único elo, há algo que tem de se resolver na sua esfera e na sua escala antes de você poder fazer a sério qualquer indagação de ordem metafísica.

Ora, quando entendemos isso, cada um de nós pode também colocar a seguinte pergunta: Quais os fatos que foram determinantes do meu destino? E, se você começa acontar sua história direitinho, verá que houve fatos que determinaram o seu destino real, sem que você opinasse a respeito, sem que fosse consultado e às vezes sem que sequer os percebesse. Na vida dos outros a gente percebe isso muito bem; na nossa, é preciso um esforço.

Por exemplo, você monta um armazém. Depois de uma crise econômica no Zâmbia, que muda o comércio internacional de um produto, seu armazém afunda. Você não precisa conhecer essa crise econômica toda, você não precisa saber onde ela começou e você não precisa saber o tamanho dela. Você sabe apenas que seu armazém afundou. Agora, eu pergunto a você: você quer ver o tamanho do inimigo que liquidou seu armazém? Quer ver o tamanho do elefante que pisou em cima de você, ou não? Quer conhecer realmente o que determina sua vida? Note que não estamos falando de causas sobrenaturais, estamos falando de causas sócio-econômicas. Nesse momento, a maior parte das pessoas baixa os olhos como o personagem da "Máquina do Mundo". Não quer ver, e não querendo, volta à condição de animalzinho — o bichinho vivente cuja vida não tem sentido, cuja vida não precisa ter sentido, e que só espera morrer o mais rápido possível. A partir desse momento, mesmo o esforço que o sujeito faça para atender aos seus impulsos vitais, seus desejos, estará atendendo apenas a um instinto de morte. Qual é o resultado final da vida biológica? A morte. É o único resultado a que a vida biológica pode levar. Portanto, na hora em que você limita sua vida ao biológico, por encantadora que ela ainda possa parecer, você sabe que está indo apenas na direção da morte e de mais nada. A renúncia ao sentido leva embora consigo a própria vida.

Conhecer o sentido da vida pressupõe conhecer o sentido das coisas que vão acontecendo enquanto ela se passa. Mas a apreensão desse sentido às vezes implica o conhecimento de forças terríveis, forças de escala histórica, social, planetária ou supra-planetária. Suponha, por exemplo, que os planetas exerçam alguma influência sobre a sua vida. Suponha que um planeta se deslocando em sua órbita planetária possa causar um efeito na sua vida. Como é que você vai dialogar com um monstro desse tamanho? A maior parte das pessoas não deseja, por medo, levantar os olhos para ver o que determina a sua vida. Mas a aquisição do sentido da vida pressupõe a aquisição do sentido do cenário cósmico em que você está; não em si mesmo, como se faz ecologicamente, mas como cenário da peça que é a sua vida. Partindo do ponto onde você está, a consciência pode ir se alargando em círculos concêntricos cada vez maiores, para compreender gradativamente o conjunto de fatores que determinam objetivamente a sua existência. E à medida que esta consciência se amplia, mais nítido se torna o dever pessoal que dá sentido à sua vida. E aí você não busca mais proteção na inconsciência covarde (fingida no começo, mas que com o tempo se torna inconsciência mesmo), e sim no dever, que lhe infunde coragem cada vez maior.

Acontece que, quando alguém faz isso, vê que é quase um milagre tomar alguma decisão em meio a todos esse fatores enormemente poderosos. Nessa hora, o indivíduo é obrigado a enxergar a realidade mais brutal da vida humana: a fragilidade do poder individual. A expansão da consciência pressupõe uma retração das pretensões e uma perda do egocentrismo, e neste ponto a maior parte das pessoas volta atrás. Para não perder aquele falso senso inicial de segurança, aquela ilusão de que ele próprio é o centro do mundo, de que ele próprio decide livremente sua vida, o sujeito fecha os olhos ante a máquina do mundo, baixa a cabeça, e daí para diante é igual a um carneiro, ou um porco, ou um ganso; mas um carneiro, um porco ou um ganso que continua com a ilusão de que é uma grande coisa.

Nesse sentido específico, o personagem do filme aceita o mais plenamente possível a condição humana. Ele entende e assume o que se passa. Ele entende que sua vida é determinada por um diálogo, um confronto, com forças infinitamente poderosas, forças que podem inclusive fazer com ele uma piada sinistra. Aliás, o título do filme, Aurora, nascer do sol, tem um motivo bastante óbvio. O personagem do filme é o verdadeirotwice born, o renascido em Deus, o renascido no reino do Espírito.

É óbvio que há fatores que ele pode ignorar, mas que jamais o ignoram. Nós podemos ignorar os fenômenos cósmicos, ou históricos, mas eles nos atingem; nós não sabemos deles, mas eles sabem de nós. Como um judeu na Alemanha nazista: ele podia ignorar o Führer, mas o Führer não o ignorava. Como um cristão na URSS: ele pode ignorar Stálin, mas Stálin o conhece muito bem. Em certo momento, esse cenário assume de fato uma configuração sinistra. E você agüenta enxergá-la? Você quer saber, ou não? Nesta passagem é que se decide se o homem vai ser digno da condição humana ou se ele vai se imputar aquela autocastração espiritual, que é a pior perda por que um sujeito pode passar, e que nenhuma reparação material pode compensar. O homem que desistiu de saber pelo quê são determinadas sua vida, sua biografia, desistiu dessa vida e dessa biografia. Ele já não lhe dá mais valor, jogou-a no lixo. Agora, no máximo, ele está reduzido a uma criança que, ignorando tudo em volta, pede milagres ou amaldiçoa o destino, a socieadde, o próprio Deus; Deste ponto em diante, só um milagre, mesmo. Mas o pedir milagre é uma coisa amaldiçoada pelo próprio Cristo. "Maldita a geração humana que pede prodígios". E como é que o sujeito vai obter prodígios se não quer sequer olhar para a natureza em torno, olhar para o mundo real onde esses prodígios se sucedem a todo instante?

Aqui é preciso citar uma frase do velho Gurdjieff (não gosto dele, mas ele tem uns achados verbais incríveis), que diz que a maior parte das preces consiste em pedir que dois mais dois dêem cinco. O indivíduo não sabe exatamente o que pedir. Ora, se ele não olha nem a realidade em torno, ele não sabe onde está, portanto também não sabe o que quer. Vai pedir uma coisa qualquer, uma bobagem. Ao fazer isso, está recusando o dom do Espírito, está cometendo o pecado primeiro: "Eu não quero ser um ser individual consciente e responsável, eu quero ser um bichinho que não sabe de nada, quero permanecer no estado de inocência animal." Ele quer pecar contra o Espírito e ainda quer que Deus faça um milagre? Todos os pecados são perdoados, menos esse.

É por isso que vejo uma blasfêmia profunda na apologia vulgar da "vida simples", das "pessoas simples". Esse é um aspecto que nunca foi muito bem estudado. A autêntica simplicidade evangélica consiste justamente em pedir pouco, em não precisar de muito, e não em levar a vida de um bichinho que ignora o mundo que o cerca. Este ignorar é recusar o dom do Espírito, e este é o pecado que não é perdoado nem nesta vida nem na outra, o pior dos pecados. Tudo é perdoado menos o pecado contra o Espírito Santo. Qual é este pecado? A ignorância voluntária — e ainda há quem chame isso de "simplicidade evangélica".

A falta de interrogação sobre o sentido da vida, a depreciação desta busca ou sua redução a uma curiosidade acadêmica, como se algo desligado do eixo da vida, isto é o desprezo pelo Espírito. Se o sujeito faz isso e depois vai ler a Bíblia, vai rezar, ele está perdendo tempo. É uma besteira: ele já informou a Deus que não quer nada com Ele.

Essa desespiritualização é a total absorção do indivíduo nas tarefas de subsistência, incluindo as tarefas de prazer, que também são para subsistência. Você precisa de uma certa quota de prazer sexual, gastronômico, etc., simplesmente para sobreviver, assim como, para sobreviver, precisa de uma certa dose de esforço dolorido. Enquanto o indivíduo está limitado a essas duas coisas, ele optou pela vida natural, não quer saber do sobrenatural. Se ele quiser saber do sobrenatural, terá de passar por essa interface, que é o sentido da vida dele mesmo.

Para você saber o sentido de uma coisa, primeiro precisa saber que coisa é esta. "Que é que eu sou?", "Onde é que eu estou?", "Que é que eu estou fazendo aqui?", "Que é que está me acontecendo?" e "Em que rumo está indo o curso da minha vida?" Por exemplo: Você deseja realmente saber todos os impulsos hereditários malignos que herdou de seus antepassados? Assassinos, estupradores, traficantes, contrabandistas, proxenetas, dedos-duros — quer? Quer ver tudo isto? A isto Dante chama descida aos infernos: reconhecer as possibilidades inferiores que ainda estão em você. Você querver isto? Não, não quero. diz a maioria. Então, se não quer, não adianta ir rezar, porque a função do Espírito Santo é revelar precisamente isso para você. Pelo olhar firme e inteligente é que você supera todo o mal que há em você: se você é capaz de saber, de olhar, você já está acima do seu próprio mal interior; agora, se você não quer ver, você ainda está em baixo. Não temos medo daquilo que nos é inferior. Só quando você quer ver esse conjunto é que, pelo simples fato de ser vistas, essas possibilidades então são queimadas, passam a fazer parte do seu mundo cognitivo e você de certo modo já está colocado acima delas.

Então, se formos pensar a ferro e fogo, a idéia que se tem hoje da preocupação "realista" com o cotidiano repetível é uma fuga do Espírito, uma sucessão de analgésicos. Quando acontece uma grande desgraça, o indivíduo se pergunta "por que isso aconteceu a mim?". Boa pergunta, mas antes de perguntar pela desgraça, já devia ter perguntado uma série de outras coisas. Não, ele deixa para fazer perguntas só quando acontece a desgraça. Ora, a desgraça pode ser complicada, e ele talvez não a entenda. A situação do personagem do filme é uma situação evidentemente ideal, portanto artisticamente simplificada. É o indivíduo que nunca tinha pensado em nada e repentinamente tem de entender tudo. E ele entende. Ora, ele entende porque é um filme, é um esquema simplificado, simbólico, da vida. Na verdade, se o indivíduo passar a vida toda ignorando solenemente tudo o que se passa, quando ocorrer a desgraça ele também não vai entender, vai ficar ainda mais burro do que estava antes.

Não acredito que deixar tudo para o último minuto possa adiantar, exceto no filme. No filme, há um idiota jogado de repente numa situação trágica, onde ele tem de entender tudo e realmente entende, e, na hora em que entende, sua compreensão tem uma função catártica. Na hora em que toma consciência do que aconteceu, ele descarrega o mal que havia na situação e esse mal instantaneamente se converte em bem e sua esposa é resgatada.

Eu não nego que possa haver, neste sentido, uma atuação mágica do ser humano sobre o cenário histórico e até mesmo o cósmico, na medida em que entende o mal e, entendendo, o expressa e sublima de alguma maneira, exatamente como dizia Thomas Mann, que algumas previsões a gente faz justamente para que não aconteçam.

Mas, e se ninguém quer ver o mal? Aí vai acontecer mesmo. Se você não quer ver, você deixa tudo atuando na esfera da mecanicidade, das causas que já estão atuando independentemente de você e que vão chegar fatalmente às suas finalidades. Se você percebe e absorve este impacto, é possível que a sua tomada de consciência tenha uma função catártica capaz de beneficiar muitos seres humanos em torno.

É por isso que em geral profetas e grandes místicos são pessoas que tendem a ser mais tristes do que alegres, porque sabem o que está se passando. Podem antever certos resultados que os outros não antevêem e já sabem o que vai dar errado. Maomé olhava para um sujeito e sabia que o sujeito já estava no inferno, sabia que não podia fazer nada por ele, então chorava. Mas esta é uma última instância. Não é preciso antever o sujeito no inferno, mas um sujeito na câmara de gás ou num pelotão de fuzilamento é impossível que não haja ninguém capaz de antever. Entretanto, nas situações em que esse mal se aproxima, muitos esperam para tomar consciência no último momento.

Toda tragédia tem esse elemento: ver ou não querer ver. Na tragédia antiga, esse não ver não envolve culpa. A tragédia antiga parte do princípio de que existe uma certa limitação da inteligência humana. É um caso extremo, onde, mesmo agindo no melhor de suas capacidades, o homem não conseguiria entender, então ele se torna uma vítima inocente do jogo cósmico.

Na esfera cristã, já não se admite isso e sempre há um sentido culposo, e por isso mesmo o gênero trágico não floresce muito aqui. No mundo cristão, o que não quis ver tem culpa. Sempre há uma margem de manobra: as coisas poderiam ser de outra maneira. Pode haver um desenlace horrível, mas não trágico, porque não fatal. Foi uma escolha errada. De maneira aparentemente paradoxal, a culpa restaura a liberdade, porque ao assumir a culpa o sujeito vence, de certo modo, o destino fatal. As pessoas que hoje falam levianamente contra o senso cristão da culpa não entendem ou fingem não entender que a única alternativa a isso é o retorno à fatalidade trágica grega onde o inocente é sempre condenado. Os inimigos do sentimento de culpa são inimigos da liberdade.

Mas há maneiras distintas de entender, por exemplo, a história de Adão. Adão erra por fatalidade, ou tinha margem de manobra? Ele podia enxergar o que estava acontecendo ou foi uma pobre vítima dos acontecimentos? A interpretação muçulmana diz que foi um simples lapso intelectual, por isso não aceitam o pecado original: ali onde Adão errou qualquer um erraria. Mas é preciso compreender que a perspectiva islâmica, nesse caso, está referida à espécie humana e não ao indivíduo. No plano das ações individuais existe culpa, sim. O que o islamismo professa no fundo é apenas que o pecado de Adão foi de ordem cognitiva, e não propriamente moral.

Epílogo em junho de 1997

A gravação desta aula termina assim, abruptamente. Mas lembro que encerrei dizendo que Aurora, obra de um cineasta que foi um profundo estudioso da filosofia, da religião, do simbolismo e do esoterismo, era um cume de realização artística que o cinema nunca havia ultrapassado, precisamente porque nele as imagens condensavam diretamente e sem qualquer linguagem enigmática os problemas mais altos da metafísica do destino e da providência, com uma sutileza digna de Sto. Agostinho e Leibniz. Continuo dizendo isto e Friedrich Wilhelm Murnau continua sendo para mim o maior diretor de cinema de todos os tempos, até prova em contrário.

FICHA

Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Carl Mayer
Baseado no romance Die Reise Nach Tilsit ("Viagem a Tilsit") de Hermann Sudermann
Cinematografia: Charles Rosher and Karl Struss
Música: Hugo Riesenfeld
Montagem: Harold D. Schuster
Produção: William Fox

Papéis principais:

George O'Brien - O marido
Janet Gaynor - A esposa
Margaret Livingston - A mulher da cidade

CARVALHO, Olavo. Aurora, de F. W.Murnau:cinema e metafísica.(Aula do Seminário de Filosofia (30 jan. 1997). Gravação transcrita por Marcelo Tomasco Albuquerque e editada por Alessandra Bonrruquer). Como disponível em 18 de junho de 2011 em <http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/aurora.htm>

Para baixar o filme clique aqui.

(Cortesia de O sétimo projetor: http://setimoprojetor.blogspot.com/2011/04/sunrise-murnau.html)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sobre pessoas e árvores:

 

Um carpinteiro ambulante, chamado Stone, viu no decorrer das suas viagens, em um campo próximo de um altar rústico, um velho e gigantesco carvalho. Disse a seu aprendiz, que admirava o carvalho: "Esta árvore não tem qualquer utilidade. Se quiséssemos fazer um barco com sua madeira, ele logo apodreceria; se quiséssemos usá-la para ferramentas, elas logo se haviam de quebrar. Para nada serve esta árvore, por isso chegou a ficar assim tão velha.''


Mas naquela mesma noite, numa hospedaria, o velho carvalho apareceu em sonhos ao carpinteiro e disse-lhe: "Por que você me compara às árvores cultivadas, como o pilriteiro, a pereira, a laranjeira, a macieira e todas as outras árvores frutíferas? Antes de amadurecerem os seus frutos as pessoas já as atacam e violentam quebrando-lhes os galhos e arrancandolhes os ramos. As dádivas que trazem só lhes acarretam o mal, impedindo-as de viver integralmente, até o fim, a sua existência natural. É o que acontece em todos os lugares; por isso esforçome, há tanto tempo, para permanecer completamente inútil. Pobre mortal! Crês que se eu tivesse servido para alguma coisa teria chegado a esta altura? Além disso, tu e eu somos ambos criaturas e como pode uma criatura erigir-se em juiz de outra? Inútil mortal, que sabes a respeito da inutilidade das árvores?"

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Filo 2011: loucos, sádicos, e genetianos nos palcos de Londrina.

Mais uma vez: o show não pode parar, e o palco vivo de nossa vida será levado à cena nas apresentações deste ano. O festival trará à cidade de Londrina 12 produções internacionais e 37 produções nacionais. A coreógrafa Débora Colker é uma das presenças mais aguardadas.
Mas aguardadas mesmo são, ao menos para aquele que vos escreve, duas apresentações em especial. A primeira delas é “Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat representado pelo grupo teatral do hospício de Charenton sob a direção do senhor de Sade”, montagem tetral dirigida pelos professores do departamento de música e teatro da Universidade Estadual de Londrina Ceres Vittori Silva e Camilo Scandolara, e que será motivo de retorno de ex-estudantes do curso de Artes Cênicas à pequena Londres.
A segunda – e que coloco como segunda por ordem cronológica, e não de importância – é “Um santo às avessas”, montagem baseada em textos do escritor francês Jean Genet em contato com elementos autobiográficos de cada ator. A produção é dirigida por Aguinaldo de Souza – que também integra o elenco – professor do curso de artes cênicas da UEL. O carinho especial é devido a experiência pessoal de ter feito parte do processo de construção da primeira versão da montagem e composto a música tema da peça. Não mais estarei lá como ator, mas atuarei dissimulado no som da cena, de qualquer forma.

Perseguicao-e-assassinato-de-Jean-Paul-Marat “Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat representado pelo grupo teatral do hospício de Charenton sob a direção do senhor de Sade”.
Data: 17 de junho
Horário: 21 horas
Local: Teatro FILO

Um-Santo-as-Avessas-ft-Camila-Fontes
“Um santo às avessas”
Data: 23 de junho
Horários: 20 horas
Local: Funcart
O FILo é patrimônio artístico da cidade, evento que celebra a diversidade cultural, a ecleticidade das formas e linguagens, e enriquece aqueles que partilham do encontro. Celebre a vida: celebre o teatro. Um ótimo FILo pra todos !
Para saber mais: www.filo.art.br

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Muito além do simulacro:

 

Uma constante que se mantém desde a semiologia e da semiótica ao chamado “teatro das energias” e a “fenomenologia” até o aqui e agora da redação sobre a qual o caro leitor se detém e que, em sua relação contigo, detem-te refletidamente (refletida-mente), é o questionamento do significado, sua razão e processo de construção. A grande pergunta por trás do estudo semiótico é: afinal de contas, porque isto significa isto? Numa posição diametralmente oposta àquela que compreende o signo como associado a seu significado de acordo com uma função lógico-causal inexorável e inequívoca, outros preferem contestar a verdade de qualquer signo, diluindo qualquer significado num mar flúido de desenvolvimentos que fragiliza qualquer vínculo entre significantes e significados.

Essas correntes de pensamento são reflexo e espelho do espírito de um tempo que, diria Baumann (2003), “liquefaz” todos os ideais que configuram o espírito moderno. Hoje, em relação a seu corelato histórico, a saber, a pós-modernidade, falamos em um teatro pós-dramático (LEHMANN, 2007), que caracteriza-se pela total autonomia, enfim, do teatro, das sombras de seu fantasma por vezes opressor, a saber, a literatura dramática –  ainda que, é preciso ressaltar, possa ao texto dramático recorrer como pretexto ao texto espetacular – além de sua por sua hibridez e multimidiaticidade. Talvez devêssemos nos perguntar, com Jacó Guinsburg e Silvia Fernandes (2010), se o “pós-dramático” é mesmo um conceito operativo, pergunta essa que é face outra de uma questão mais lata, a saber, se é a “pós-modernidade”, em suma, um conceito operativo ou apenas um delírio coletivo que reflete a áugista do fracasso do projeto moderno.

A sociedade espetacularizada (DEBORD, 1997), faz do espetáculo teatral um desvio na dramaturgia da rua: farois iluminam o asfalto onde um menino fuma crack protegido pela cegueira dos transeuntes que passeiam sedados pelo efeito hipnótico das luzes dos letreiros: são luzes e mais luzes que ofuscam nossa visão, encobrindo a sujeira pra debaixo dos signos. O teatro, lugar de encontro entre o humano e o humano, se vê, a princípio, ameaçado pela “arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 1996) que consome personalidades reduzindo-as a reles signos baratos e,  tão frágil quanto a corrupta humanidade ante a mecanicidade virtual da máquina, cede à mágica sedução da fantasia desse carnaval de Fausto.

Grotowski (1976), já notara o risco, e percebera que, se o teatro estava em crise – alguma vez ele não esteve? – isso se devia a uma crise de maior dimensão, que afetava a sociedade (esse simulacro nomeado por outrem) como um todo: não foram apenas os judeus que morreram durante a segunda guerra mundial, mas, com eles, nossos mitos, nossas metanarrativas que agonizaram – continuam agonizando numa morte prolongada – junto a explosão atômica. Metaforicamente, poderíamos pensar em indivíduos sem nome que, sob a alcunha de um conceito bem “operativo”, a saber, o de sociedade, transformam-se em números, signos vazios que operam a massa.

Com Descartes (2001, 1994; ver também REALE E ANTISERI, 1990; BRANDHORST, 2010; e  GHIRALDELLI, 2007) reduzimos a alma a seu referente corporal, a saber, o cérebro, e pudemos manipular o corpo. Com Nietszche, nos vimos livres das amarras de um “Deus Pai”, fruto, talvez, de um tabu arquetípico perdido nos primórdios da humanidade, e com Marx e Engels (2008), vislumbramos a possibilidade da estabilidade social num futuro hipotético sem classes, onde a igualdade entre os homens pudesse enfim ser celebrada como fato: talvez tenha sido no conturbado século XIX que perdemos o fio da meada…

Mas por falar em fio, já me vão as linhas, e muitos livros são muito peso, podendo nada mais ser do que desculpas para nossa própria vaidade, de modo que me despeço deixando-vos uma interessante bibliografia que pode ajudar na investigação do tema aqui aludido, e com a impressão de que, a verdade de qualquer signo acaba diluida no mar flúido de desenvolvimentos que fragilizam qualquer vínculo entre significantes e significados, é porque, antes e durante, diluimos-nos, a nós mesmos, num emaranhado de fluxos contrastantes que pode mesmo fazer com que confundamos a realidade do fato com a realidade do texto.

Jeferson Torres

Bibliografia consultada:

BARTHES,Roland. Elementos da semiologia. São Paulo:Cultrix,1972.2ª edição.Trad.Izidoro Blikstein.

BAUDRILLARD,Jean.À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas.São Paulo:Brasiliense,1985.Trad.Suely Bastos.

BAUMAN,  Zygmunt, Modernidad líquida,  Editorial Fondo de Cultura Económica, México DF, 2003.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. in BENJAMIN, Walter. Arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BRANDHORST, Kurt.Meditations on first philosophy: an Endinburgh Philosofical Guide. Great Britain: Edinburgh University Press, 2010.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto Editora, 1996.

DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Trad. Maria Hermantina Galvão.

_______________.Obra escolhida: Discurso do Método, Meditações, .Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1994.3ª edição.Trad. J.Guinsburg e Bento Prado Jr.

GHIRALDELI Jr., Paulo. O corpo:filosofia e educação.São paulo:Ática,2007.

GUINSBURG,J.,NETTO,J.Teixeira Coelho e CARDOSO,Reni Chaves. Semiologia do teatro. São Paulo:Perspectiva,1978.

GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. São Paulo: Civilização brasileira, 1976.Trad. Aldomar Conrado.

GUINSBURG, Jacó e FERNANDES, Silvia. O pós-dramático: um conceito operativo?.São Paulo: Perspectiva, 2010.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 2008.

LEHMANN,Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo:Cosacnayfy,2007.Trad.Pedro Süssekind.

LYOTARD,Jean-Françoise. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro:José Olympio Editora,2004.Trad.Ricardo Corrêa Barbosa.

MARTINS,Maria Helena. O que é leitura. São Paulo:Brasiliense,2006 (Coleção Primeiros Passos,74).

MARX, Karl e ENGELS, Friedich. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Vozes, 2008.

NIETZSCHE,Friedich. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. São Paulo:Escala, s/d.2ª Edição.Trad.Antonio Carlos Braga.

NIETZSCHE,Friedich.Genealogia da moral.São Paulo: Escala, s/d.2ª edição.Trad.Antonio Carlos Braga.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007. Trad. Maria Lúcia Pereira J. Guinsburg, Rachel Araújo de Baptista Fuser, Eudynir Fraga e Nanci Fernandes.

____________. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. São Paulo: Perspectiva, 2005. Trad.Sérgio Sálvia Coelho.

PEIRCE,Charles Sanders.Semiótica e filosofia:textos escolhidos de Charles Sanders Peirce.São Paulo:Cultrix,1975.

PONDÉ, Luiz Felipe. Contra um mundo melhor. São Paulo:Leya Brasil, 2010.

REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario.Descartes: o fundador da filosofia moderna. In REALE & ANTISERI História da filosofia: do humanismo a Descartes.São Paulo: Paulus,1990.Trad. L. Costa e H. Dalboso.

ROUBINE,Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro:Jorge Zahar,1998.2ª edição.Trad.Yan Michalski.

SANTAELLA,Lúcia.O que é semiótica.São Paulo:Brasiliense,1983 – (coleção primeiros passos;103).

SANTOS, JF dos.O que é pós-moderno. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.

domingo, 12 de junho de 2011

Notas sobre simbolismo e realidade:

1. O simbolismo natural

Há três métodos de uso corrente para a explicação do símbolo:

1º O método etnológico, que o refere às intenções e valores de uma cultura em particular ou de várias delas comparativamente.

2º O método psicológico, que os refere às estruturas mais ou menos permanentes da psique humana.

3º O método esotérico (às vezes chamado também tradicional, no sentido estrito que René Guénon confere ao termo), que refere o símbolo a uma intencionalidade supra-humana.

Esses três métodos são redutivistas: os dois primeiros, ostensivamente; o terceiro, veladamente. Reduzem o símbolo a um véu, a um disfarce: de normas culturais implícitas, no primeiro; de anseios ou temores inconscientes, no segundo; no terceiro, de realidades metafísicas.

Nenhum dos três, portanto, nos responde à pergunta: Que é o símbolo? Fingindo respondê-la, substituem-na pela pergunta: De quê o símbolo é símbolo? E, tendo-nos dito o simbolizado, pretendem que aceitemos isso como conceito de símbolo — como um homem que, interrogado sobre o que são as palavras, respondesse indicando as coisas que elas nomeiam.

Esses três métodos desviam a nossa atenção do fenômeno "símbolo" enquanto tal e a dirigem às causas reais ou supostas da produção do símbolo, escorregando do quê para o porquê — o expediente clássico de quem não sabe de quê está falando. Isto não quer dizer, evidentemente, que tudo o que essas teorias tenham a dizer sobre as causas do símbolo seja despropositado ou falso; quer dizer apenas que é destituído de fundamento suficiente e que este fundamento só poderia ser encontrado justamente na investigação que essas teorias eludem e pretendem substituir, que é a investigação do quid — a primeira de todas as investigações, se não na ordem do tempo, ao menos na ordem da prioridade lógica.

Dito de outro modo, esses três métodos tomam por implícito que uma interpretação de símbolos, desde que se feche num sistema mais ou menos completo, coerente e fundamentado, já é, por si, uma elucidação suficiente quanto à natureza do símbolo — confusão idêntica à de quem tomasse a interpretação exaustiva de uma obra poética — ou mesmo de várias — como resposta suficiente à questão: Que é a poesia? Ora, pode ocorrer, por desgraça, justamente o contrário: que a elucidação da natureza da poesia acabe por impugnar todas essas interpretações, por exaustivas e coerentes que sejam, e por mais amparadas que estejam em conhecimentos científicos, revelando nelas algo assim como uma paralaxe, um desvio do eixo de atenção em relação ao centro de interesse do objeto, uma concentração das questões em objetos parecidos, associados ou circunvizinhos, uma metabasis eis allo genos como tão freqüentemente sucede nas investigações científicas não suficientemente ancoradas numa consciência crítico-filosófica das complexidades e peculiaridades do objeto que se pretende investigar.

A estratégia que proponho para a abordagem do símbolo adotará como ponto de partida metodológico a seguinte regra: todo empenho sistemático de interpretação de símbolos deve ser posto entre parênteses como meramente hipotético, até que se alcance uma elucidação suficiente da natureza do símbolo. Esta elucidação, por sua vez, deve ser independente de qualquer chave ou sistema interpretativo ou explicativo-causal previamente dado, por elegante, completo ou prestigioso que seja.

Como objeto inicial da investigação, não admitirei nada mais senão o fato bruto de que existem palavras, grafismos, objetos, entes enfim, aos quais os homens atribuem um tipo especial de significação que denominam "simbólica", diferente de uma outra que denominam "não simbólica". Este é um fato de ordem histórica e cultural. A crença nele subentendida refere-se a uma dualidade de modos de significação. Nossa primeira tarefa será simplesmente verificar se essa dualidade é possível e, se possível, em que pode ela consistir.

2. A perspectiva rotatória

1. Cada termo significa uma constelação de intenções atualizáveis. No curso habitual do pensamento, essas intenções permanecem latentes e em germe, como que comprimidas no invólucro do termo. Não as atualizamos senão quando temos algum motivo especial para fazê-lo. Uma pergunta, uma dúvida, podem convidar-nos ou obrigar-nos a desdobrar as significações que supomos carregar em algum canto obscuro do nosso "interior". Então às vezes verificamos que elas não estão lá; foram-se, ou então a enumeração não vem tão completa quanto esperávamos.

2. Esse caráter meramente potencial da intenção significante revela-nos que, na comunicação habitual, as funções expressiva e comunicativa da linguagem ( K. Bühler ) prevalecem amplamente sobre a função denominativa, com a qual contamos, apenas, como com uma reserva bancária sobre a qual passamos cheque após cheque sem verificar o saldo.

3. A filosofia analítica pretende suplantar as "imprecisões" da linguagem corrente, explicitando até o extremo limite as intenções e significados latentes e submetendo-os à crítica filosófica. Mas uma certa latência e imprecisão não são inerentes à natureza mesma do pensamento, da percepção e do próprio ser das coisas? Uma explicitação plena de todos os significados só é realizável sob a forma de um sistema ideal de conceitos e juízos, que por sua vez não se atualizará na consciência todo de uma vez, mas parte por parte, enquanto as demais partes permanecem latentes no fundo. Ou seja, a consciência que temos desse sistema terá ela mesma a estrutura de perspectivas rotatórias que observamos na vida psíquica corrente e na comunicação habitual: um conceito vem para a frente, enquanto os outros vão para o fundo, desaparecem como conteúdos atuais da consciência para se tornarem esquemas compactos de conteúdos meramente atualizáveis.

4. Uma cadeia lógica não é, assim, mais conhecível de instantâneo e no todo do que uma casa ou uma paisagem. Temos de percorrê-la, e quando no fim cremos conhecê-la "no todo", o que sobrou em nossas mãos não é mais que um esquema simplificado, ou seja, uma potência de reatualizar no tempo a cadeia percorrida. "Conhecer" um raciocínio é poder reproduzi-lo na seqüência, não é reproduzi-lo no todo e com todos os detalhes num instante sem duração.

5. Forçosamente, cada passo que é atualizado na consciência implica a virtualização dos outros, seu recuo para o depósito do meramente atualizável.

6. É isto o que quero dizer com "perspectiva rotatória". É a estrutura do ato mesmo de conhecimento, seja do conhecimento pelos sentidos, seja do mero pensamento.

7. É, por outro lado, a estrutura mesma da fenomenalidade como tal: nenhum objeto, nenhum ser, pode se apresentar a um determinado sujeito cognoscente na totalidade instantânea dos seus aspectos. É ilusão pensar que o objeto meramente ideal pode fazê-lo. O conceito mesmo de "quadrado" só se apresenta a mim no resumo compacto de um termo, e não no desdobramento completo das propriedades que inclui. Tanto o pensamento abstrato quanto a percepção sensível têm a estrutura de uma perspectiva rotatória: o sujeito cognoscente circunda o objeto tanto quanto circunda o conceito, e o faz precisamente porque seu foco de atenção é circundado pelas latências de inumeráveis objetos, conceitos e signos.

3. Dado, sentido e unidade (I)

A percepção do mundo como amontoado ou coleção de "coisas" ou meros "dados" sem uma conexão espiritual última pressupõe um observador destituído, por seu lado, de sua própria conexão espiritual, do elo interior entre sensação e significado, consciência e ação, antes e depois; um observador estúpido, em estado de divisão hipnótica e quase paralisia catatônica. É curioso, ou mais propriamente absurdo, que o "mundo" fragmentário captado por essa percepção deficiente seja tomado como norma da "realidade" e medida de aferição da validade da conexão interior que apreendemos no universo. A percepção efetiva do real exige, na mais alta medida, as supremas faculdades de síntese, que nos revelam, para lá mesmo da própria unidade física do mundo, a unidade de um "sentido" do mundo para o qual convergem todos os atos conscientes de um homem no mundo, até os mais mínimos. O kantismo e outras escolas que tomam como "realidade" os puros dados sensíveis e reduzem toda síntese a uma contribuição subjetiva que a mente faz ao mundo ignoram que um mundo sem unidade não poderia ser "dado" a nenhum sujeito, para que o ordenasse segundo suas categorias a priori, porque toda ordenação pressupõe a unidade consciente do sujeito e esta unidade só se realiza, precisamente, nos instantes de coesão ótima em que o mundo lhe aparece como uno, não como um amontoado fragmentário de sensações. A fragmentação do mundo em "dados" supostamente pré-categoriais só se obtém por dois meios: pelos estados patológicos de divisão do eu ou por esforço pessoal de abstração imaginativa; no primeiro caso, o sujeito está separado de si funcionalmente; no segundo, hipoteticamente e, em suma, fingidamente. Os "dados" não são prévios à síntese significativa; obtêm-se, ao contrário, por divisão abstrativa desta última, seja como resíduos de uma sonolência alucinatória, seja como meras formas fantasiosas de um mundo construído pela imaginação. Os famosos "dados" são em suma construídos, e a unidade espiritual última do mundo, em vez de construída, é dada. Por isto fracassam todas as tentativas de construí-la (ou mesmo de reconstruí-la) por meio de criações mentais, seja na arte, seja na ciência, seja na metafísica. A verdadeira metafísica não constrói um mundo, não é metafísica construtiva; é fundamentação discursiva da unidade do mundo espontaneamente percebida. Daí também o fracasso de toda tentativa de "expressar" o sentido último; ele é o pressuposto de toda expressão; é o supremamente percebido, jamais construído; e, fatalmente, só expressamos o que nossa mente constrói. É uma ilusão deduzir, da inexpressabilidade do sentido, sua inapreensibilidade. Ele é inexpressável justamente por ser apreensíveleminenter, por ser "o" aprensível como tal, enquanto todos os demais apreensíveis só são apreensíveis nele e por ele, sendo por isto expressáveis.

Por não fazer parte nem do mundo pragmático que construímos com nossas ações, nem do mundo imaginativo que construímos com nossa arte, nossa ciência, etc., ele acaba por parecer, à reflexão filosófica de primeira instância (reflexão sobre a cultura, sobre o mundo construído pelo homem), como um "x" remoto e distante, ao qual só poderíamos chegar no termo de uma caminhada que começa no "dado" sensível. Mas é uma ilusão de ótica, que inverte a ordem do real; ao sentido não se chega, pois ele é o pressuposto da própria percepção e, mais ainda, da caminhada reflexiva. O objetivo desta não é atingir o sentido, mas recuperar, no nível discursivo (portanto intersubjetivo), a certeza inicial e intuitiva do sentido. O objetivo é tornar patrimônio comum essa certeza inicial e fundamental que o homem só possui enquanto individualidade vivente, não enquanto ser social falante, plural na variedade de seus papéis e idiomas. No curso dessa recuperação, muitos desastres acontecem, que separam o homem da recordação do sentido e o levam a imaginar, seja que pode construir um sentido a partir dos dados, seja que pode encontrar um sentido partindo de dados sem sentido, seja que pode provar a inexistência do sentido ou a separação abissal entre o dado e o sentido, seja que não necessita de um sentido e pode viver entre puros dados. Tal é o panorama da história da filosofia.

As presentes considerações vão um pouco além do que habitualmente se chama "realismo". O realismo afirma somente a realidade do mundo. Elas afirmam que a realidade do mundo é um dado, e que também o são, inseparavelmente dela, a unidade espiritual e o sentido do mundo. Realidade, mundo e sentido não podem ser construídos, seja pelo filósofo, seja pela cultura; só podem, por isto, ser percebidos intuitivamente, subentendendo que a intuição pressupõe um sujeito cognoscente dotado de unidade autoconsciente ótima no momento do ato intuitivo. Todo o trabalho da filosofia - e da cultura - é registrar o mundo intuído e defendê-lo, mediante a faculdade discursiva, da dissolução. E quem o ameaça de dissolução é a própria faculdade discursiva, constitutivamente dupla e auto-antagônica - dialética, em suma - ; dupla pela duplicidade de suas operações (significatio e suplentia), dupla pela duplicidade de suas funções (pensar e comunicar).

4. Dado, sentido e unidade (II)

A percepção imediata do sentido e da unidade do mundo, a que me refiro, é simplesmente o saber imediato que temos acerca do que estamos fazendo nele naquele preciso momento, e de aonde pretendemos chegar em seguida, e de aonde pretendemos que vão dar, no fim, todas as nossas ações. Sem esse pressentimento, seríamos incapazes de dar o próximo passo. Seria tolice imaginar que um homem dá seu próximo passo independentemente de qualquer consideração do que vem depois - um próximo passo isolado, atomístico. O "viver cada momento" é apenas uma figura literária. Aquele que diz "viver o momento" o faz sobre o pano de fundo de toda uma concepção do universo, a qual inclui, forçosamente, uma expectativa de continuidade. Tanto que, se fosse informado de sua morte iminente, seu momento seguinte seria bem diferente daquele que experimentaria se lhe dissessem, ao contrário, que a dama de seus desejos o espera no quarto ao lado.

A expectativa de uma continuidade que se prolonga para além da morte, seja na forma de uma vida celeste, seja sob a forma da simples permanência temporal do mundo após nossa saída dele, seja sob qualquer outra forma que se imagine, é uma conditio sine qua non do agir humano, e está subentendida mesmo nas nossas ações mais mínimas e corriqueiras. Mas essa diversidade de imaginações e suposições traduz apenas a variedade de reações individuais a uma experiência que é única e a mesma em todos os seres humanos: a experiência do movimento geral do cosmos, que vai para alguma direção e nos leva. Essa experiência pode ser vivenciada de maneira consciente, com mais probabilidade, na infância, mas em geral ela se torna inconsciente pelo fato mesmo de ser a mais constante e ininterrupta experiência humana, fundamento e condição de toda e qualquer experiência em particular.

5. Unidade e unidades

Mas, se a unidade do mundo é dada e a unidade de cada ente conhecido é apenas potencial, atualizada parcialmente e passo a passo pela perspectiva rotatória, uma conclusão se segue imediatamente: cada ente conhecido só é uno e só é ente a título de imago mundi. Da unidade total extraem sua unidade as unidades parciais.

Olavo de Carvalho

Estas notas serviram de base para as aulas do Seminário de Filosofia de janeiro de 1998, onde receberam extensos desenvolvimentos orais. — O. de C.

25/12/97

Fonte: <http://www.grupotempo.com.br/tex_oc_simboreal.html>, visitado em 12 de junho de 2011

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Arte e Revolução:

 

MEyerhold

Foto: Vsevólod Meyerhold (morto fuzilado em 1940 por aqueles que permitiram que a psicopatia revolucionária ofuscasse seu sentido de realidade e capacidade de se apiedar pelo drama alheio).

O estudante sério, como se sabe, é uma espécie da qual presumo haver salvado da extinção alguns dos poucos exemplares que ainda restam no Brasil, e até fomentado a geração de uns quantos em proveta, longe daquela raça temível de predadores que são os pedagogos e os burocratas do Ministério da Educação.

Um daqueles raros sobreviventes envia-me uma pergunta das mais interessantes, merecedora de resposta em jornal. Quer ele saber se o artista, o poeta, o escritor infectado de mentalidade revolucionária está irremediavelmente perdido para a criação artística ou pode, pelo gênio pessoal, transcender nela a mecanicidade grosseira do pensamento revolucionário.

Se aceitamos a definição croceana da arte como “expressão de impressões” – e até hoje não vi motivo para rejeitá-la –, a resposta à pergunta torna-se auto-evidente. A mentalidade revolucionária é essencialmente a inversão do sentido do tempo, a arrogância psicótica de interpretar o presente e o passado à luz das virtudes imaginárias de um futuro hipotético. O futuro enquanto tal não pode ser objeto de impressão, só de conjeturação imaginativa ou de construção mental. Uso estes dois termos para designar atividades diametralmente opostas: a primeira consiste em ampliar simbolicamente as impressões do presente e jogá-las num futuro imaginário, como fizeram George Orwell e Aldous Huxley em “1984” e no “Admirável Mundo Novo” respectivamente. A segunda inventa o futuro e remolda à luz dele as impressões do presente. É esta a única via aberta à “arte revolucionária”. Mas é certo que essa arte já não é mais arte e sim mero revestimento estético de uma construção conceptual. Cabe aí a distinção que Saul Bellow fazia entre os “intelectuais” e os “escritores”, estes incumbindo-se do ofício propriamente artístico de transmitir as “impressões autênticas”, aqueles tratando de deformá-las segundo uma construção hipotética.

A mentalidade revolucionária é intrinsecamente hostil à criação artística, porque volta as costas às “impressões autênticas”, reconstruindo o mundo segundo os cânones de uma “segunda realidade” artificial e artificiosa. O termo “segunda realidade” é de Robert Musil, e quem o leu sabe do gigantesco esforço que esse escritor dispendeu para restaurar a arte do romance numa atmosfera cultural em que as idéias e ideologias pareciam ter sepultado esse gênero sob a grossa placa de chumbo das construções conceptuais.

Isso não quer dizer, no entanto, que todo artista politicamente comprometido com uma causa revolucionária permaneça escravo dela no exercício do seu mister criativo. A história das artes no século XX – e especialmente da literatura – é uma galeria de consciências dilaceradas entre a fidelidade ao futuro hipotético oferecido pelas ideologias e a realidade presente das “impressões autênticas”.

Olavo de Carvalho

Fonte: http://www.olavodecarvalho.org/semana/080725dce.html

A liberdade do indivíduo e a ditadura das classes: um comentário a partir da fala de Clodovil

 

Discordo de Clodovil quando este afirma que os gays não devem ter orgulho do que são. Penso que, ao contrário, eles podem e devem, sim ter orgulho de serem o que são. A sexualidade é dimensão mesma da individualidade de cada um: somos seres sexuais, e devemos ter orgulho de quem somos, mas respeitando aqueles que discordam em gênero, número e grau de nossos pontos de vista e atitudes.

Não chamaria um gay de "anormal" - o que fica subentendido na frase "eu nasci de um homem normal e uma mulher normal" - porque eu penso que cada um é normal em si. Não considero a homossexualidade uma doença, uma anomalia, aberração ou coisa do tipo.

Se todos fossem respeitados igualmente, como seres individuais, singulares, que são, não precisaríamos de nada disso. Pergunto-me: quando que essa máxima, escrita na constituição brasileira: todos são iguais perante a lei, sem distinção de natureza: deixará de ser uma piada e passará a ser uma atitude, um ideal a ser praticado antes que proclamado ?

Não obstante, sou contra a aprovação do projeto de lei nº 122, de 2006. Na verdade, considero mesmo a lei nº 7.716, a qual o projeto visa revisar, um equívoco, e de aqui em diante tentarei expor minha visão sobre o caso. Minha posição, que certo contrasta diametralmente daquela da maioria, dá-se em função da minha descrença em qualquer "luta de classe". Não compreendo o complexo social a partir desta perspectiva. Pra mim o buraco é mais em baixo - bem mais embaixo - trata-se de uma guerra que se dá no indivíduo, para o indivíduo, contra si mesmo e contra seu próximo, por vezes a favor deste, num contínuo de tensão em distintas gradações que amplifica-se no cosmo social. Compreendidos como "classe", seja ela a classe dos gays, dos heteros, dos católicos, dos evangélicos, dos budistas, dos proletários ou da burguesia, resumimos o inominável à nomenclatura do grupo. Este grupo resume o indivíduo àquilo que o define, a saber, a "classe". É esse pensamento - de raiz marxista - que leva à redução do indivíduo àquilo que compreendemos por sua classe: não é o cristão, o ser humano individual e único, mas apenas "mais um cristão", ou seja, mais um engravatado, que vai à igreja, paga dízimo, lê a bíblia, etc: apenas mais um da "classe". O mesmo reducionismo aplica-se aos homossexuais: não é o homossexual, o ser humano único e singular, o indivíduo, mas "apenas mais um gay", apenas mais um "da classe", que é assim e assado, pensa assim, age assim, como o grupo, como "a classe". Não obstante, não observo com bons olhos a aparente pregação da liberdade total, a liberação de todas as drogas, e o ataque cada vez maior aos valores sobre os quais construímos a civilização moderna. Nesse ponto concordo com Clodovil: é preciso cuidado para não confundir liberdade com libertinagem. A democracia, quando mal gerida, caminha em direção à libertinagem, e é esta, o caos anárquico das vozes dissonantes sem direção, que abre espaço à imposição de regimes ditatoriais, pois uma sociedade que não conserva uma certa solidez em suas bases éticas fragiliza-se àquela que é mais impositiva e inflexível. A ética relativista pós-moderna caminha nesse sentido, e me faz vislumbrar uma ditadura mundial para um futuro próximo, o que consoa com as mais terríveis profecias apocalípticas.

Concluo meu discurso retomando o terceiro parágrafo desta redação:

Se todos fossem respeitados igualmente, como seres individuais, singulares, que são, não precisaríamos de nada disso. Pergunto-me: quando que essa máxima, escrita na constituição brasileira: todos são iguais perante a lei: deixará de ser uma piada e passará a ser uma atitude, um ideal a ser praticado antes que proclamado?

Diante do raciocínio classificatório que qualifica grupos antes de considerar as atitudes particulares de cada indivíduo sujeitas aos vigores da lei, considerando todos como iguais perante a constituição, não sou otimista quanto ao futuro.

E para aqueles que quiserem estudar um pouco o assunto, fica uma sugestão de leitura nem um pouco “politicamente correta”:

NOELLENEUMANN, Elisabeth. La espiral del silencio: opinión pública, nuestra piel social. Paidós, 2010