Existe razão na própria estrutura da realidade. Não fui eu, nem você, e nem Richard Dawkins ou Mendel, que inventaram a carioteca, por exemplo. A carioteca é um dado da realidade, da estrutura mesma biológica das células dos animais, dos seres eucariontes. Esse dado existe antes mesmo da existência de um léxico que o represente, de uma linguagem escrita ou falada que o exprima. À medida em que nós, seres humanos, também dotado de razão para perscrutar essa realidade, a compreendemos mais - ou achamos que a compreendemos - esse podemos melhor lidar com ela. Mas ela se impõe, para além do que podemos idealizar ou teorizar. É possível em nossos dias, como que criar novas formas de vida, elaborar em um laboratório um protótipo: o ser humano re-cria-se, a si mesmo, como que brincando de Deus. Mas isso só é possível justamente porque a própria natureza clama por justiça, e se clama, é porque ela diz pra gente: ei vocês, me respeitem. À medida em que nós destruímos a natureza, destruímos a nós mesmos, já que fazemos parte da natureza. Mas se a natureza tem razão, então existe um princípio racional que a criou - seja por um processo criativo evolutivo, transformativo, ou imediato, muito embora eu acredite mais na primeira hipótese - e que se insinua na inteligência que deciframos da realidade e que tentamos traduzir, dentro de nossas limitações, por meio de números, fórmulas e palavras que inventamos pra isso. É uma das razões pelas quais eu passei a acreditar em Deus. Uma das, mas não a única, é claro. E digo mais. Se existe razão na natureza, talvez também existam princípios morais que se imponham, para além do que existe de perecível, passageiro, efêmero, para além do que é cultural, temporário. Creio nisso porque me espanta saber que alguns por aí tem defendido que o massacre de índios recém-nascidos que são enterrados vivos em algumas tribos indígenas é algo que deva ser respeitado como um patrimônio cultural, e não combatido pelo opressor "homem branco". A matéria-prima da cultura é a vida humana. Não existe cultura sem vida, de modo que o respeito a vida deve prevalecer sobre as diferenças culturais sob pena de, caso contrário, destruir a própria cultura, sacrificá-la em nome da neutralidade moral com respeito à cultura alheia. Digo isso sem querer ofender antropólogos ou culturalistas. Na época da faculdade, a disciplina que eu mais gostava de estudar depois de história da arte era antropologia. Mas mesmo em nome da cultura, nem tudo se justifica. Então, eu fico num empasse. Por um lado, o teísmo é a crença na existência em Deus, e diz-se deste Deus que ele é inteiramente Bom, que é Justo e Perfeito, Onisciente, Onipresente e Onipotente. Mas por outro lado, quando olhamos a nossa volta, vemos a miséria, a fome, a vitória dos covardes, a ditadura da mediocridade, o mal vencendo a todo custo. Mas por outro lado, se me refiro ao mal, percebo que só posso acreditar na existência de um mal que não seja mera questão de opinião, de moda, de cultura, quando tenho uma razão que pode transcender o que é temporal, o que é comum à cultura e à época. E é em Deus que encontro essa razão, num paradoxo curioso: ao mesmo tempo em que Deus é tido como um mito estranho e absurdo, ele é uma Razão considerável para a justificação da consciência moral humana. E talvez não seja apenas mais um "mito", no sentido de um personagem fictício criado para representar nossas próprias características humanas ou ideais, mas uma realidade pulsante que se insinua na estrutura mesma da realidade, na inteligência que desta apreendemos e buscamos compreender, na consciência moral que nos é própria, e nas experiências religiosas, que ultrapassam fronteiras culturais e geográficas, atravessando séculos e séculos. Também estas experiências podem ser estudadas à luz das ciências naturais, mas nada que contradiga o que tentei expor até aqui: pois não existe razão na fé?